Olhe só

Por Wendell Guiducci

Olhe só, meu amor. Olhe só o que minha rede trouxe do mar. Olhe só o que temos para jantar.

Esse aqui tem a forma de uma arraia negra. Esse menor, uma tartaruga de piche sem as quatro pernas, de olhos vendados e boca amordaçada, casco amolecido como a moleira aberta de um feto malformado. E esse grande parece um cobertor feito de asfalto para nos aquecer nas noites frias, quando estivermos abandonados à nossa própria morte e aguardando a sorte que não vem.

Olhe como esticam! Olhe como grudam! Olhe só, meu amor, o que temos para jantar.

Olhe só, meu senhor. Olhe só o que minha rede trouxe do mar. Pelo lote todo, quando o senhor vai pagar?

Olhe só a beleza betuminosa desses espécimes únicos. Percebe o brilho químico? As formas fluidas? Veja que peculiar combinação de hidrocarbonetos! Ah, meu senhor, tinha de vê-los no oceano. Mais leves que a água, dançam à flor das ondas como nuvens muito pretas refletindo o brilho do sol. É uma beleza! Se o cliente não quiser comê-los, pode colocá-los no aquário! E confidencio-lhe agora: desconfio que sejam imortais! Portanto, sempre fresquinhos. Que sucesso não fariam na sua peixaria, hein, senhor? Ou no aquário de uma clínica de estética? De um restaurante japonês? No gabinete de um presidente de olhos loucos?

Olhe como esticam! Olhe como grudam! Pelo lote todo, quando o senhor vai pagar?

Olhe só, doutor. Olhe só o que minha rede trouxe do mar. Por favor, abra a janela. Não quer experimentar um pedaço?

A prova é de graça. Pesquei agora cedinho, eu e meus companheiros, nas praias mais bonitas que qualquer homem já viu. O doutor precisava ver o balé. Precisava ver como elas se separam e se juntam e se separam e se juntam de novo em nossas redes e formam um grande véu de carbono e hidrogênio pretíssimo, enxofre de primeira, ah, doutor, uma explosão de sabores! Alcanos e alcenos e alcinos e alcadienos, aromáticos… tem de tudo aí, doutor. Olhe bem, antes que abra o sinal… olhe bem o brilho negro da danação de mil corais…

Olhe como esticam! Olhe como grudam! Não quer mesmo experimentar um pedaço?

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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