À mestra, com carona: as idas e vindas da professora Ercília
Na semana do professor: há 13 anos, Ercília pede caronas em Juiz de Fora para chegar em Goianá, onde trabalha alfabetizando crianças
Saída da roça para estudar na cidade, Ercília Xavier Salgado não fez pré-escolar e foi direto ao primeiro ano. “Peguei uma professora muito brava e eu não sabia nada. Chegou o fim do ano, e a diretora pegou a cartilha e pediu para eu ler. Se conseguisse, passava. Eu morria de medo dela, tremia só de chegar perto. Não li nada e tomei pau. No próximo ano, veio uma professora que era conhecida como Mariinha dos Correios, porque o marido era carteiro. Ela foi a luz na minha vida. Era um doce. Tinha uma filha que estudava na minha sala. Ela pegou a mochila do ano anterior da filha dela e me deu. Me deu a lancheira também. Assim ela me conquistou, e eu me senti acolhida. Nesse gesto, comecei a apanhar gosto pelos estudos”, conta a mulher, aos 50, e a três dias de completar 51 anos.
O trauma com a diretora, no entanto, manteve-se. Ao se tornar professora, Ercília reencontrou a mulher, mas desta vez como secretária de educação de Rio Novo. A jovem professora encontrava sua superior ao levar-lhe documentos da escola onde lecionava. Ia e voltava com as pernas bambas, até que a ex-diretora soube do temor e passou a sorrir para Ercília. Tempos depois, incentivada pelo marido, a professora que tinha apenas o título do magistério resolveu fazer o curso normal superior em São João Nepomuceno. “Meu marido fez uma redação para mim, eu decorei, cheguei lá o tema era diferente. Mas eu coloquei a redação que tinha decorado dentro e consegui passar”, narra, aos risos, a mulher que, mais tarde, especializou-se em alfabetização. Para sua surpresa, no dia de sua formatura no curso superior, Ercília recebeu uma mensagem da secretária de educação, a temida diretora que havia lhe reprovado em seu primeiro ano de estudos: “Por mais belo que seja o sonho, o sentimento de dever cumprido é que nos transforma de sonhadores a vencedores”, escreveu.
A irmã nos primeiros dias de aula
Logo que fez o magistério, Ercília prestou um concurso para lecionar em Rio Novo, para onde se mudou ainda bem pequena. Sua classificação, no entanto, fez com que permanecesse trabalhando numa confecção de shorts de ginástica. “Estava satisfeita com a aquela vidinha de interior”, lembra. Até que, em 1997, foi convocada a assumir uma turma na Zona Rural, multisseriada, com 30 alunos de 4 a 6 anos. “Fiquei supernervosa nos primeiros dias. Chegava em casa e chorava. Falava com a minha mãe que não aguentava mais, e ela me incentivou muito. Cheguei a pedir para a diretora para levar a minha irmã para que me ajudasse, porque eu não dava conta. Ela foi alguns dias e depois eu fui me acostumando. O ônibus que levava a gente chamávamos de Tomatão, porque era vermelho. Ele tinha uma janela e a outra não. Em tempo de frio, tinha quase que levar cobertor. Aos poucos, fui me apaixonando. A carência das crianças me chamava atenção. E todo o amor que eu tinha compartilhava com eles”, recorda-se a profissional, que acabou por conquistar a humilde comunidade e, num momento em que esteve prestes a sair da escola, viu os pais fazerem um abaixo-assinado pedindo sua permanência. Anos depois, justamente quando a irmã foi diagnosticada com um agressivo câncer de mama, Ercília foi desligada do cargo e passou alguns anos dedicando-se à família da irmã. Ao regressar às salas de aula e já morando em Juiz de Fora, Ercília estava casada com Afrânio, amigo da juventude que reencontrou adulta e com quem teve seu único filho, Hugo, de 11 anos, que estuda num colégio particular no Bairro Santa Terezinha. O marido, professor de Geografia, dá aula em Chácara pelas manhãs e, durante as tardes, leciona numa escola municipal no Bairro Parque Guarani, onde a família vive.
Uma placa escrito professora
Há 13 anos, Ercília empregou-se, por contrato, no município de Goianá. “Três colegas estavam lá trabalhando e iam de carona. Eu me juntei a elas. A gente pedia no dedão. Às vezes, ia uma, depois as outras duas. Com o tempo, uma das colegas tirou carteira e comprou um Fusquinha velho. A gente dividia a gasolina, e, no dia que enchia o tanque, o carro até engasgava. Depois ela comprou um Gol, e a gente continuou dividindo, até que ela passou num concurso aqui na cidade. Sobraram eu e a outra colega, que acabou se mudando para Goianá. Acabei ficando sozinha”, ri. “Foi então que tive a ideia de pedir carona de uniforme e fazer uma plaquinha mostrando que sou professora. A primeira foi em papel, a segunda, ficou melhor, mas chovia, e ela molhava; ou ventava, e ela entortava. Fiz uma mais grossa, plastifiquei. Um dia peguei carona com um senhor que me disse que ela estava muito apagada e que eu devia colocar meu destino. Mas não escrevo para onde eu vou, porque se eu conseguir carona até Grama, vou até lá e depois pego outra. Se conseguir até Coronel Pacheco, que é o que mais ocorre, vou, ando até o quebra-molas e pego carona para Goianá. Pego tanta carona que, às vezes, dentro de Goianá mesmo, eu pego carona”, conta, bem-humorada, a professora que este ano retorna com um professor que volta até Grama, no mesmo horário que ela.
Ao lado do caixão no carro funerário
Na saga de esperar por um carro que pare no trevo próximo de sua casa, na Avenida Juiz de Fora, Ercília já acabou se atrasando para o trabalho. Passou, então, a sair mais cedo de casa, às 11h, para estar às 12h30 em Goianá. “Deslocamento não é um problema para eu trabalhar. Gosto do contato com as pessoas que me dão carona. Cada dia conheço uma pessoa diferente ou reencontro quem não vejo há muito tempo. Saio daqui feliz”, diz. “A principal razão é a economia”, assegura. Por dia, de ônibus, Ercília gastaria R$ 26,20, o que, em um mês, resultaria em R$ 524. “Também porque acabo me divertindo”, acrescenta, dizendo nunca ter passado por constrangimento ou perigo. “Já peguei carona com carro de funerária e fui lá atrás, com o defunto, mas nunca passei por nada demais. Pelo contrário, há alguns dias peguei carona com um caminhoneiro amigo, que me disse: ‘Ainda bem que te encontrei, porque estava com um sono terrível!'”, observa ela, destemida desde garota, desde os tempos de Tabuleiro, cidade onde nasceu. Aos 12, Ercília perdeu o pai, e a vida tomou novos rumos. Ela, a mãe e os seis irmãos conheceram a escassez. “Minha mãe colocou a gente para trabalhar muito cedo. Fui babá, varri o terreiro de uma senhora, fiz companhia para uma idosa que fazia meus uniformes para a escola. Comecei na confecção com uns 16 anos”, lembra ela, que leva a mesma resiliência para a prática em sala de aula. “Sei que os alunos de hoje não estão fáceis, mas se o professor der carinho, se levar um pouco do afeto que a dona Mariinha me deu, consegue mudar muita coisa. Tenho essa esperança”, diz, com os olhos cheios d’água. “Alfabetizar é maravilhoso. Quando chego, e meus alunos dizem ‘Tia, estou lendo!’, eu me sinto tão feliz”, emociona-se. “Eu me sinto muito querida”, acrescenta ela, em seu último ano trabalhando com os anos iniciais. Ercília se prepara para atuar com alunos um pouco mais velhos em 2020, quando passará a trabalhar de manhã, para conseguir ficar com o filho no turno da tarde. “Sonho? É difícil dizer. Eu me sinto realizada.”