Parece que não, mas há homens trabalhando na conservação da rodovia BR-040. Eles limpam acostamentos, fazem pequenos reparos em placas de sinalização e pintam os marcadores reflexivos fincados ao largo da pista, aquelas pequenas estacas de concreto conhecidas como olho-de-gato.
Entre os pintores que trabalham acocorados sob o sol caridoso desses dias frios nas proximidades do quilômetro 796, um se destaca. Um que traça suas linhas com o mesmo esmero com o qual, quem sabe, as serviçais de Cleópatra delineavam-lhe os olhos. Um que vê cada estaca como parte do conjunto que forma uma grande instalação artística, um Tunga de botas grosseiras, Jun Matsui das carnes cimentadas.
Embora use a mesma tinta preta e impessoal que seus colegas, não trabalha com os mesmos pincéis fornecidos pela concessionária que administra a rodovia. Traz os seus de casa. Talvez os tenha herdado do material escolar da filha que hoje, a custo de muito suor despejado no asfalto da BR, cursa Engenharia ou Serviço Social na Universidade Federal de Juiz de Fora. Quem sabe tenha apanhado de um monte de entulho em um desses descartes irregulares que abundam nas periferias da cidade. Ou talvez sejam refugos de seu próprio ateliê escondido nos fundos de uma casinha nos recônditos de Filgueiras.
Pouco importa.
Com esses pincéis, o pintor de olho-de-gato traça linhas fluidas, que começam no alto de cada estaca e descem fazendo uma suave curva côncava até a aresta, de onde sobem pela outra face da estaca, repetindo a dinâmica do movimento de forma leve, porém firme, até encontrar seu ponto inicial. Faz a mesma coisa na parte inferior da estaca e só então preenche, com um pincel mais largo, o espaço em torno do plástico reflexivo de preto-piche.
Por esse cuidado e esse talento, o pintor de olho-de-gato é tido por seus colegas como vagaroso, indolente até. Mas ele não liga. Sabe que não tem cúmplices ali, pois eles não compreendem a verdadeira natureza de seu trabalho. Não sabem o que é levar um ofício de beira de estrada ao état de l’art.