Sinfonia Sousa Santos: aposta na transformação pela música
Família Sousa Santos fala pela primeira vez desde que deixou administração do Centro Cultural Pró-Música, doado à UFJF em processo finalizado em 2015. Lamentam cenário atual, mas não se arrependem. “Ninguém mais aposta no sucesso do que a gente”, diz Júlio César, ao lado da mãe, Maria Isabel
Tinha apenas 9 anos quando saía a pé do Bom Pastor até o Parque Halfeld. O violino ia no carro da mãe. Júlio César Sousa Santos pedia que Maria Isabel levasse o instrumento para o Conservatório Estadual de Música Haidée França Americano, onde ela dava aulas e ele estudava. Não queria que ninguém o visse carregando um violino. “Só gente velha tocava violino. E tocava mal. E eram pouquíssimos. Tanto que uma criança de 9 anos sentia vergonha de fazer aquilo”, ri Maria Isabel, que levou mais de uma década para fazer daquele incômodo o que se tornou um dos mais ambiciosos projetos culturais de Juiz de Fora, o Centro Cultural Pró-Música. A semente, conta, era a constatação de que o ensino musical apresentava sérias falhas. Era preciso desmitificar os instrumentos antigos e seus aprendizados. “As aulas começaram na minha casa. Depois fui trazendo professor do Rio de Janeiro, primeiro o de flauta doce, mais tarde o de canto”, lembra ela. Também era necessário compreender a eficiência do trabalho coletivo, das formações e dos conjuntos no processo de apreensão das técnicas. Não havia ensino sem prática, defendia. E também não havia artista sem palco. Para isso, ao lado do marido Hermínio, construiu um teatro com 500 lugares, com a proposta de realizar concertos mensais. Uma autoridade da cidade criticou. Havia cadeiras demais para uma arte com plateia de menos. Mas os Sousa Santos trabalhavam com o esperado. E também com o desejado. As então recentes formações da instituição, como o coral, teriam uma casa própria para se apresentar. Quando Júlio tirou carteira de habilitação, passou a ajudar os pais buscando espectadores em suas casas para assistir os concertos. “Quantos artistas vinham aqui e ficavam contentes falando que aqui tinha mais público do que em outros espaços renomados”, recorda-se Maria Isabel. Pouco a pouco, carregar um violino nas costas tornou-se algo aceitável, trivial e belo.
Nos últimos 30 anos, carregar um violino pelas ruas de Juiz de Fora tornou-se paisagem para o mês de julho. “Nessa época, eu dormia e acordava pensando no Pró-Música. Não havia sossego”, lembra-se Maria Isabel, que até a 25ª edição esteve à frente, junto dos filhos Júlio e Luís Otávio, do Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga. A partir de então, após doar todo o patrimônio material e imaterial do centro cultural para a UFJF, silenciou. Passados cinco anos volta ao assunto de uma vida. Ao lado de Júlio César comenta a situação atual da marca criada no segundo ano da década de 1970. Hoje sob a posse do Poder Público, o Pró-Música tem o teatro fechado para reformas há mais de três anos, e eventos descontinuados, bem como algumas de suas formações. Reduzido, o festival mantém-se em atividade, assim como o coral e a orquestra sinfônica. Mãe e filho rejeitam arrependimentos. “Ninguém mais aposta no sucesso dessa iniciativa na universidade do que a gente. Abrimos mão prematuramente, porque a doação da Pró-Música foi feita em seu ápice. Tem a possibilidade da reversibilidade, mas não cogitamos isso. Essa foi a nossa decisão. São os primeiros cinco anos. Vamos esperar os próximos cinco para que esteja em outro patamar”, aposta Júlio César.
‘Estamos onde optamos estar’
Economista por formação, Júlio César era servidor municipal, lotado na Secretaria de Planejamento e Gestão da Prefeitura de Juiz de Fora, mas boa parte de sua trajetória profissional passou cedido ao centro cultural que ajudou a erguer. Aos 60 anos, há uma semana, ele se aposentou. Agora descansa. E não lamenta. “A gente está num lugar hoje em que optamos estar. Fizemos porque quisemos. Essa história de doar literalmente todo o patrimônio material e imaterial para a universidade saiu de uma conjectura nossa de que, um dia, não estaríamos mais aqui, vivos. E o trabalho – não por vontade própria, mas porque a condução era visceral – dependia da família, e na ausência dela tenderia a acabar. Pensando nisso, veio todo o projeto de doação para a UFJF, o único lugar que a gente avaliou que teria a possibilidade de fazer algo que se assemelhasse ao que a gente fazia. Já não estamos à frente do processo, mas acompanhamos à distância. Na escritura de doação, condicionamos que fosse criado um conselho curador dentro do órgão suplementar Pró-Música/UFJF, que deliberaria todos os processos. Esse conselho foi constituído por cinco membros da Pró-Música e cinco da universidade, sendo três da Pró-Música vitalícios”, conta ele, um dos três nomes. Os outros são Maria Isabel e o irmão Luis Otávio (em substituição ao pai, Hermínio), todos vitalícios. Já Fernanda Sousa Santos (neta de Maria Isabel) e Pedro Couri (cantor, professor e violinista, integrante do Quarteto Spalla Pró-Música) são indicações da família.
“Esse órgão foi criado com a finalidade muito específica, oportuna e necessária de transferir ‘know-hall’ e fiscalizar tudo o que faz parte do processo de doação. A única contrapartida que foi condicionada ao doar o patrimônio foi que a universidade continuasse realizando tudo o que a instituição fazia. A universidade tem que realizar não somente o festival, mas todo o resto”, pontua o filho, também músico e um dos fundadores do grupo de música antiga. Ainda que o contexto não seja o ideal, Júlio César reconhece como louvável a destinação de uma verba da universidade, R$ 430 mil, para a realização do festival. “Lógico que fomos surpreendidos pela mudança de conjuntura. Por isso, entendemos como um processo de acomodação”, comenta. “Não temos feito uma queda de braço, porque compreendemos. Damos razão de que não há recursos. Mas bem que apostei em outro cenário: a universidade, com seu nome e seu peso, se aliaria ao Pró-Música, e para o patrocinador seriam duas marcas fortes e, assim, seria mais facilitado o trabalho de captação”, diz ele, que apostava no Poder Público como única garantia para a continuidade.
Júlio César também cita que a própria Fadepe (Fundação de Apoio e Desenvolvimento ao Ensino, Pesquisa e Extensão), criada como uma instituição de direito privado e sem fins lucrativos para apoiar a UFJF, ao ter seu lugar repensado nos últimos anos, contribuiu para os desacertos iniciais. “Isso só não pode se tornar desculpa para não funcionar. É preciso arrumar uma saída”, pontua, reivindicando a retomada das demais atividades da instituição, como o Concurso Nacional de Piano Arnaldo Estrella e o Concurso Nacional de Cordas Paulo Bosísio. “Era uma engrenagem onde tudo fazia sentido. Tanto é que, quando veio o curso de música na UFJF, enxergamos que era o que faltava para nós, porque perdíamos nossos músicos para os grandes centros”, recorda-se, contando terem recebido, com frequência, reitores solicitando que indicassem suas instituições para os alunos dos cursos livres da Escola Pró-Música. “Eles vinham e queriam conhecer a nossa estrutura. Imaginavam que encontrariam um batalhão, mas eram apenas eu, o Júlio e o Hermínio”, ri Maria Isabel. A família era a máquina propulsora. “São três posturas diferentes. Minha mãe tem uma vontade de que o mundo todo aprenda música. Havia nela, por viver a didática musical no Brasil, uma sensação de que a coisa não funcionava e precisava mudar. Vinha a história de dismitificar o ensino. Meu pai sempre foi um idealista, uma pessoa de coração aberto. E eu sempre fui de ajudar”, enumera Júlio César.
‘Tínhamos a vocação de querer se autossuperar’
O mês de julho para a família Sousa Santos era de ansiedade, pelos dias que se anunciavam com o festival, e também de tensão com os dias que passara no festival. Não havia calmaria. “Chegava julho, todo mundo achava maravilhoso o festival. E após o término nosso grande problema era fazer o próximo, porque tinha sempre que superar o anterior. Nós tínhamos essa vocação de querer nos autossuperar. Por isso a proposta foi crescendo e crescendo de maneira absurda”, comenta Júlio César Sousa Santos, apontando para um objetivo que, ano após ano, tornou-se fazer do festival o maior e melhor do país. Precisariam, portanto, superar o agigantado Festival de Inverno de Campos do Jordão, cujo orçamento, este ano, maioria advinda da iniciativa privada, superou R$ 7 milhões, valor recorde para o projeto que em 2018 amargou cortes, com uma verba total de apenas R$ 3 milhões, advindos do Poder Público. “Chegamos a ser o segundo ou terceiro festival mais importante do país. Tivemos a competência de interferir na produção cultural do país. Não se falava no Brasil em música colonial e antiga. Existiam iniciativas isoladas, e foram essas pessoas que fomos fortalecer. Quem mexia com música colonial eram verdadeiros heróis, tentando segurar um patrimônio brasileiro estando desamparado. No festival, conseguimos colocar todo mundo junto. E isso repercutiu”, defende Júlio César, citando, ainda, o Encontro de Musicologia Histórica, que acontece a cada dois anos, como instrumento fundamental no processo de formalizar o pensamento acerca dessa produção.
Matriarca de uma família musical, com cinco filhos, dez netos e dois bisnetos, Maria Isabel recorda-se de um artigo publicado pela “Folha de S. Paulo” intitulado “Primo rico e primo pobre”, relacionando o festival juiz-forano com o paulista, semelhantes em qualidade e vertiginosamente distintos em orçamentos. “Não coloque no palco coisa ruim, porque desestimula. Se oferece concertos gratuitos, é para estimular. Quem vai, muitas vezes, vai pela primeira vez, então, precisa de estímulo. E se a pessoa que já tem uma sensibilidade vai ver uma coisa ruim chamada de boa não vai querer ver mais. A qualidade, a consistência, a continuidade sempre foram nossa mola propulsora”, avalia Júlio César. “O festival é um projeto único, daí a responsabilidade. As premiações todas alcançadas até a 25ª edição atestam que o mercado cultural brasileiro leu isso de uma forma clara. Juiz de Fora mesmo foi entendendo a importância do festival quando ele foi aparecendo lá fora, quando começou a ter sua relevância legitimada por outros centros culturais e pela grande mídia. E a nossa lógica sempre foi a de que a credibilidade só existe quando se trabalha com seriedade.”
A credibilidade, inclusive, é o que desde o início garantia as plateias do festival. Maria Isabel de Sousa Santos lembra-se que, já antes da décima edição, foi preciso restringir o número de alunos das oficinas do evento, por falta de alojamentos. “Eram acomodações acanhadas, mas atendiam. Não falseávamos, e as pessoas, encarando uma oportunidade única, vinham”, destaca Júlio César, que na própria casa recebia alguns dos alunos ou convidados. “Os Toffolo (Ronaldo, coordenador geral, e Rodrigo, diretor artístico e regente), que hoje são da Orquestra Ouro Preto, passaram os festivais, na infância e na adolescência, hospedados na minha casa”, conta. “O festival se tornou uma referência para o país porque, ao longo da história da instituição, conseguimos formar um músico que é o Luís Otávio, uma das maiores autoridades na América Latina. Isso é fato. Os discos que ele gravou durante o festival são referências e serão nos próximos 50 anos para todas as pessoas que trabalham nessa área. Não é pretensioso a gente dizer isso. É uma constatação”, pontua o irmão. “O Luis Otávio era nosso representante até mesmo na Europa. Hoje ele é professor em São Paulo (na Escola de Música do Estado de São Paulo – EMESP Tom Jobim) e está trabalhando no Festival de Inverno de Campos de Jordão. Essa semana vamos assisti-lo. Ele vai reger um concerto lá, está muito bem. Há um mês, voltou da China. Viaja o mundo inteiro, sempre solicitado”, orgulha-se a mãe.
‘Com algumas modificações, mas faria tudo de novo’
Questionada sobre um concerto que mais a marcou, Maria Isabel de Sousa Santos não consegue precisar. Teme cometer injustiças. Cita alguns, dentre eles o concerto da pianista Magdalena Tagliaferro, que veio já com mais de 80 anos. Sobre as recentes edições, afirma estar na plateia de algumas apresentações. Espera, inclusive, assistir o concerto da Orquestra Sinfônica da UFRJ na abertura do 30º festival, neste domingo, às 20h, no Cine-Theatro Central. Júlio César não mais assiste. Saturou, diz. E também não comenta a programação. “Todo artista assina a sua obra. Assinamos 25 edições do festival. Sobre essas 25 falamos, respondemos por elas. Já as 26, 27, 28, 29 e 30 têm outra assinatura. Não podemos falar sobre elas. Me dá certo alento ouvir que a universidade está tentando retomar o que era. Isso já é um começo. Não quero jogar pedras. Sabemos que é difícil. As pessoas não conseguem imaginar e nem eles (a UFJF) imaginavam. Quando pegaram para fazer encontraram problemas, porque não é fácil”, pontua ele, que desde muito cedo aprendeu, com o centro cultural mesmo, o significado da resiliência. As orquestras foram escolas para isso. “Quando a nossa orquestra atingia um nível de excelência, os músicos iam embora. E a orquestra ficava ruim. Era de lascar. Construíamos e voltávamos ao mesmo ponto. Com o advento do festival, o processo de reposição passou a ser mais ágil. Se antes levava seis anos, passou para dois, e isso ajudou na manutenção da qualidade”, narra Júlio. “Se faltava gente na Orquestra de Câmara, que foi para a França, tinha outro muito bom na Camerata. As orquestras eram degraus umas para as outras. Íamos mudando de patamar. Tinham cinco orquestras”, explica Maria Isabel, orgulhosa de um modelo complexo que construíram. “Não tínhamos cartilha e não copiávamos de ninguém. Nós inventávamos muita coisa”, diz Júlio.
Aos 83 anos e ainda cheia de disposição, Maria Isabel segue inventando menos. “Eu fico na escola, dou uma orientação, mas ela anda sozinha”, comenta. A escola, por sua vez, por uma questão legal, acabou não sendo incorporada e mudou de nome. Hoje se chama Associação Propagadora da Música. Os planos, segundo Júlio, eram de que um convênio fosse firmado com a UFJF, para garantir a permanência dos instrumentos na escola, o que não aconteceu. Mais de 300 instrumentos integram o termo de doação, dentre eles os pianos que ainda ocupam o prédio na esquina das ruas São Mateus e Coronel Pacheco, de frente para a Escola Estadual Fernando Lobo. “Ainda não tiveram como levar. São 13 pianos. Os instrumentos de corda foram. Muitos alunos pararam de estudar, e outros foram tentando arrumar emprestado ou comprar”, conta Maria Isabel, certa de que aquele desejo antigo, de transformar o ensino musical em Juiz de Fora, foi realizado com sucesso. “O Centro Cultural Pró-Música nunca foi um negócio. Nada contra quem faz isso, mas a instituição nunca pensou em enriquecer. E o desfecho dela comprova isso. O envolvimento, a volúpia, a vontade, a gana é que eram atípicos. E isso teve uma consequência”, ressalta Júlio César. Maria Isabel concorda. Pergunto-lhe, então, se faria tudo de novo. “Com algumas modificações, mas faria tudo de novo”, ri a matriarca. “O que deu resultado, que vemos de benefício, nesses mais de 40 anos em que trabalhamos pela instituição é muito gratificante. O reconhecimento nacional do Pró-Música foi muito grande. Foram muitos os prêmios. Foi uma trajetória de muito trabalho e muito resultado.”
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