A dança da reconstrução de Tufic
Saído de um guerra civil na adolescência, Tufic reergueu a vida no Brasil, ao lado dos pais e irmãos, e tornou-se um dos principais divulgadores e mestres de sua cultura árabe em Juiz de Fora
“Acorda, Tufic! Acorda!”. Basta ouvir o chamado e chegam as recordações. Não importa a hora e tudo vira noite. “Durante 16 anos da minha vida, eu estava dormindo e chegava meu pai e meus irmãos me acordando, chamando para ir embora. Pegávamos sacos de dormir e íamos para o subterrâneo, que tinha em cada prédio. A guerra era sempre uma surpresa. Como meu pai era militar (dos setores administrativos), quando desconfiava que ia estourar, via um jeito de levar a gente para o Norte, fugindo. A gente sofria. Tudo parava, telefone, televisão, energia elétrica”, lembra Tufic Kamel Nabak, cuja pele moura, o nariz adunco, não lhe deixam esconder a ascendência árabe. “Minha vida toda foi em guerra. As lembranças que tinha de lá eram só de tristeza, de um passado negro. O trauma foi grande. Lógico que tenho a lembrança dos costumes, da família, da minha avó, mas a guerra acabou afetando muito a minha vida. Não tive infância de calma como as pessoas têm. Por isso a guerra ficou muito forte em mim.”
Em 1990, quatro anos após o pai Kamel visitar Juiz de Fora, a família Nabak comprou as passagens para partir de Beirute. O desejo de mudar-se não cabia mais na casa sempre vulnerável. “No Líbano só tem um aeroporto, porque é um país muito pequeno. Quando compramos a passagem, a guerra estourou na semana do voo. Ficamos naquela de ‘vai ou não vai’. O aeroporto foi fechado, mas saiu na rádio que para quem fosse naquele voo, a empresa disponibilizaria um navio para pegar o voo em Chipre, numa ilha. Fomos para a casa de um tio no porto e conseguimos embarcar. O voo era para ter 300 passageiros, mas estava vazio, com cerca de 20 pessoas. Poucos conseguiram chegar. Era sinal de que deveríamos vir mesmo”, acredita o homem, que deixou para trás um país devastado e colocou-se a reconstruir a rotina na cidade cujo aniversário, 31 de maio, é exatamente um dia após o seu.
Ao lado dos pais Kamel e Hassnate, e dos irmãos Claude e Tony, Tufic desembarcou em Juiz de Fora e desfez as malas na casa de uma tia avó, no Bairro Bairu, onde a família passou os dois primeiros meses. “Parentes do meu pai e da minha mãe, que vieram no início do século passado, de navio, se instalaram aqui. Meu pai, quando decidiu sair do Líbano, escolheu um país onde tivéssemos alguém para nos receber. Não foi fácil recomeçar. Ficamos quase uma semana para poder acordar, porque tudo foi muito louco. Não foi fácil adaptar, porque era outra cultura, outro país. Sentia saudades. Vim com meu pai, minha mãe e meus irmãos, mas os primos, tios, avós, vizinhos e amigos ficaram lá. Meus parentes aqui são de segundo grau.”
Detrás
Ras Baalbek, onde Tufic nasceu, fica ao norte do Líbano, entre as montanhas que divisam suas terras com a Síria, num frio tão desolador no inverno quanto o calor excessivo do verão. Daí a decisão de a família migrar para a capital Beirute, onde Tufic cresceu. “Nos três meses de férias – julho, agosto e setembro – íamos para Ras Baalbek para descansar. Como eu era muito ligado às artes, participava de grupos de escoteiros da minha cidade, fazendo teatro e dança. Em Beirute, durante o dia a dia, eu participava do grupo de teatro da escola e me apresentava no Dia das Mães e em outras datas”, recorda-se. Quando começava a guerra, porém, a vida parava. “Ficávamos no subterrâneo ou íamos para a Síria. Por isso nunca me profissionalizei nas artes. Quando cheguei ao Brasil, em 1990, fui estudar idioma na UFJF, fazendo português para estrangeiros”, conta o homem, bastante à vontade com a norma culta da língua, o que lhe permitiu, em 1998, ser selecionado num teste de elenco para o filme “Lavoura arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho baseado na obra homônima de Raduan Nassar. Durante o processo de estudos sobre o folclore árabe, Tufic acabou se envolvendo ainda mais. “As gravações e os ensaios foram em São José das Três Ilhas. Ficamos seis meses imersos naquilo, fazendo aulas. O diretor também me colocou para dar aulas e compor o elenco de apoio. Tudo o que vivemos, numa fazenda, com os costumes, foi maravilhoso, como se eu revivesse o que havia deixado para trás. Ali me apaixonei por aquilo e decidi: É isso que eu quero. Foi, então, que fui fazer curso de teatro com o Grupo Divulgação, depois com o GTA e mais tarde com o Marcos Marinho. Estava focado no teatro para fundar o grupo”, lembra, referindo-se ao Grupo Nabak, criado em 2001 no Clube Sírio e Libanês. Há 20 anos, portanto, Tufic viaja pelo Brasil palestrando, dançando e ministrando cursos de idioma e cultura árabe. “A colônia árabe fica maravilhada porque a dança faz reviver nossa cultura, nossa tradição”, comenta o dançarino, que em 2007 regressou para sua terra natal. “Quando fui para lá pela primeira vez, conheci o país, coisa que não fiz quando morava lá. Agora tenho as lembranças bonitas de lá, do turismo, da alegria do povo. O Líbano está sempre preparado para ser reerguido.”
Imediato
Juiz de Fora ofereceu aos Nabak o acolhimento e o respeito de que precisavam. “Os meus parentes que foram para o Canadá e Estados Unidos sofreram muito. Aqui eu nunca sofri preconceito. O povo recebe todos muito bem”, pontua Tufic, que vive num apartamento no Bairro Granbery, enquanto a mãe mora no Centro da cidade. O pai faleceu há cinco anos. E um dos irmãos estabeleceu-se no Nordeste do país. “Não saio de Juiz de Fora, gosto muito daqui, não vejo motivos para sair”, comenta ele, que diante da oportunidade cinematográfica abandonou o curso de engenharia e seguiu para a graduação em turismo, feita na vizinha Santos Dumont. “O curso me ajuda muito na área de elaboração de projetos, entretenimento, promoção de eventos. Combinou com o trabalho que eu começava nas artes”, diz Tufic, que, passados 16 anos, voltou a receber um telefonema da Globo, convidando-o para ministrar um curso de cultura árabe para os atores da série “Dois irmãos”, também dirigida por Luiz Fernando Carvalho e exibida em 2017 na TV Globo. “Hoje as pessoas têm muita curiosidade. Quando eu cheguei ao Brasil, não via isso. A novela ‘O clone’ despertou muito esse interesse. E, desde o atentado de 11 de setembro, o mundo árabe começou a despertar mais atenção do Ocidente”, avalia. “Hoje o país (Líbano) também está calmo. Tudo o que está acontecendo na guerra da Síria já aconteceu no meu país. Há problemas políticos, mas está calmo, aberto ao turismo novamente. Beirute voltou a ser a ‘Suíça do Oriente’. Vários programas brasileiros fazem matérias sobre lá. E muitas companhias aéreas começaram a fazer pacotes para lá. Aqui em Juiz de Fora mesmo foi um grupo enorme em março para o Líbano.”
Adiante
Questionado sobre pertencimento, Tufic não titubeia: “Já sou mais brasileiro. Já moro aqui mais do que lá. Mas jamais vou me esquecer da minha terra. Nela nasci e nela me inspiro. Nem a distância, nem o tempo conseguiram apagar esse amor pelo Líbano.” Cabe ao país, no entanto, fazer a própria parte, conta ele. “Não me sinto estrangeiro, mas luto, até hoje, pela naturalização. É muito complexo conseguir. Conheço gente que está aqui há 50 anos e não é naturalizado. Nesse ponto sofro muito e fico triste, porque atrapalha meu trabalho. Já recebi convite para dançar na Espanha, Peru, Paraguai, mas não posso. Tenho a permanência definitiva, CPF e tudo mais, mas para viajar tenho que usar o passaporte libanês. E outros países não dão visto para árabes. Se eu fosse naturalizado, não viveria isso. E também poderia fazer concursos públicos. Também não posso votar”, lamenta, diante do terceiro processo indeferido e de um fôlego descomunal para alcançar seu objetivo. E, ainda, para constituir a própria família. Como não imaginava resistir tanto, Tufic diz encher-se, todos os dias, de esperanças novas, que divide generosamente com o lugar que o abraçou quando sua fragilidade parecia sem fim. “Quando eu cheguei, foi época da Copa de 1990. Depois aconteceu o impeachment do Collor. Peguei muitas transformações. E hoje, não vou mentir: quando alguém fala mal do Brasil eu fico muito triste. Gosto muito desse país. Aqui tem problemas, mas nada se compara à guerra. As pessoas dão mais valor quando vivem uma guerra, quando morrem amigos, parentes e vizinhos seus, quando as bombas caem em cima de você. O Brasil, com todos os seus problemas, não tem guerras, não tem terremotos. É um país maravilhoso, que merece viver mais tranquilidade.”