Você não sabe como é que era

Por Wendell Guiducci

– Era um horror, você não tem ideia. Ficávamos com mais umas, sei lá, duzentas pessoas numa sala enorme e escura.
– Duzentas?
– Duzentas, às vezes até mais… olha, nas salas mais antigas, você não vai acreditar, mas tinha lugar pra quase duas mil pessoas!
– Duas mil pessoas???
– Duas mil pessoas assistindo ao mesmo filme. E, tipo… direto, sabe? Não dava pra dar pause nem nada, era direto, filme de duas horas, duas horas e meia…
– Gente, gente…
– E era um horror completo, porque, sabe, as pessoas ficavam conversando às vezes, fazendo comentários, perguntando, falando “uai, eu não entendi isso não”…
– Eu é que não entendo como é que podia isso.
– E o cheiro de comida? Pipoca, cheetos
– Cheetos? Podia isso?
– queijinho, pelinha, chocolate, tudo que você imaginar misturado ao mesmo tempo.
– Credo.
– Pois é, olhando para trás eu não consigo imaginar como é que a gente podia conviver daquela maneira bárbara achando a coisa mais normal do mundo.
– Bárbara mesmo.
– E as pessoas colavam chicletes embaixo das cadeiras, e você não sabe, eles não trocavam as cadeiras, a gente vinha e sentava na mesma cadeira que outras dezenas de pessoas já haviam sentado ao longo da semana… tem ideia da quantidade de micróbios e dedos lambuzados de cheddar e manteiga de pipoca e pozinho de Doritos…?
– Nossa.
– Mas o pior de tudo eram os chutes.
– Chutes?
– Porque as cadeiras eram dispostas em fila, né? E sempre tinha alguém atrás de você que não cabia direito, que chutava, dava joelhada na sua poltrona quando você tava tipo bem concentrada no filme. E quando levavam crianças então?
– Crianças? Eram permitidas crianças?
– Pra você ver. Cachorro não podia, mas criança podia, dá pra acreditar num troço desse?
– Ainda bem que eu não nasci nessa época, cruzes.
– Sorte sua. Olha, meu bem, o vovô precisa dormir agora. Podemos nos falar de novo, digamos… na quinta que vem? Umas dez da noite?
– Quinta… deixa eu ver… não, quinta eu vou estar conectada com o André, vamos resolver uma questão da horta suspensa dele, parece que o pulso eletromagnético da base está oscilando. Pode ser no sábado às oito?
– Sábado às oito. Combinado. Conectaremos. Bons sonhos, meu anjo.
– Bons sonhos, vô.

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Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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