Na literatura também tem destas coisas que não se explicam. O autor português Luís Filipe Sarmento tinha livros traduzidos para o inglês, espanhol, francês, italiano, árabe, mandarim, japonês, romeno, macedônio, croata, turco e russo. No Brasil, contudo, nenhuma linha publicada. Mas o desejo do escritor de figurar entre os autores de língua portuguesa expostos nas nossas livrarias realizou-se com “Gabinete de curiosidades” (160 páginas). A publicação, que marca a estreia de Sarmento aqui no país, chegou às lojas no dia 6 de novembro pela editora Landmark. É uma obra híbrida, como ele mesmo a classifica, sendo dividida em três partes.
A primeira, intitulada “Generalidades”, apresenta 24 poemas; “Hipermodernidades”traz 24 ensaios, panfletos e manifestos. Já “Raridades” é uma ficção composta por 24 microcapítulos. A temática é a relação do homem com o mistério da existência, assunto constante em toda sua obra.
“O mistério, o desconhecido, as razões pouco iluminadas da existência. Eu penso que ser é sair e não ficar ou permanecer. Cada vez que tomamos a decisão de sair estamos a partir para o desconhecido, expomo-nos ao perigo, ou seja, à experiência de vivenciarmos lucidamente a existência. O passado já aconteceu, o presente vive-se, o futuro é uma inexistência. Nesta viagem, o homem abre-se à surpresa. E é a sua capacidade de se surpreender cada vez que sai que o estimula a ser um criador. E um criador é muito mais do que ser um criativo”, afirma um autor fascinado pelos experimentalismos da linguagem.
“Em meu entender, se não houver a coragem de o escritor se expor ao perigo experimental da linguagem corre o risco de mimetizar e de perder a sua voz ou que ela se dilua nas vozes do mainstream. É o que hoje se faz com a política. Esta paranoia com o “politicamente correto” está a conduzir o exercício político para a grande farsa, para a grande mentira, para a inoperância e, em última análise, para a perda de liberdade de manifestação do indivíduo. Experimentar é expormo-nos ao perigo. E quando nos expomos ao perigo criamos liberdades éticas, estéticas. Nada pode criar obstáculos à condição ontológica de liberdade. O homem é um ser livre, defende a sua liberdade para criar.”
Luís Filipe Sarmento é também tradutor, jornalista, editor, realizador de cinema e televisão, professor de escrita criativa, de História dos Modernismos e da Estética. É Membro do International P.E.N. Club, da Associação Portuguesa de Escritores e do International Comite of World Congress of Poets. Entre 1994 e 1995, foi Coordenador Internacional da Organization Mondial de Poétes. Já em 1999 e 2000 foi Presidente da Associação Ibero-Americana de Escritores.
Marisa Loures – As três partes da sua obra dialogam entre si?
Luís Filipe Sarmento – Sim, dialogam entre si. Em todos os meus livros, desde o primeiro, “A idade do Fogo”, que publiquei quando tinha 18 anos, a ideia surge sempre com o título. É a partir do que dá imediatamente rosto à obra que se edifica uma estrutura que obviamente tem de dialogar entre si. Caso não o faça corre o risco de se desmoronar. Em “Gabinete de Curiosidades” o diálogo que se estabelece é sobre o equívoco de alguma poesia que se faz a pensar em prêmios e menos em literatura, sobre o homem manipulado por gadgets econômicos, financeiros, políticos e sobre a urgência da recuperação do sentido da liberdade, contra a violência e o excesso inconsequentes que transformam o cotidiano num combate muito mais impetuoso do que em épocas passadas. O amor deu lugar ao desamor e é a partir desta premissa que se negociam sensações de aparências. Perdeu-se o respeito pela democracia.
“Imagina, ao fim de 42 anos a publicar livros por esse mundo fora, livros, artigos, poemas em antologias, nunca conseguira publicar nem sequer um pequeno texto no Brasil, um país onde nos exprimimos na mesma língua, o que nos dá a facilidade de estar aqui a comunicar sem intérpretes. É a concretização de um desejo antigo. Foi a ponte mais longa que atravessei. E é, ao mesmo tempo, uma emoção, um mundo interior de sensações que me questionam sobre o que será estar de fato junto do leitor brasileiro. É um enorme prazer e também um risco.”
–Você já tem livros traduzidos para o inglês, espanhol, francês, italiano, árabe, mandarim, japonês, romeno, macedônio, croata, turco e russo. O que a estreia no mercado editorial brasileiro representa para um autor português já consagrado?
– Imagina, ao fim de 42 anos a publicar livros por esse mundo fora, livros, artigos, poemas em antologias, nunca conseguira publicar nem sequer um pequeno texto no Brasil, um país onde nos exprimimos na mesma língua, o que nos dá a facilidade de estar aqui a comunicar sem intérpretes. É a concretização de um desejo antigo. Foi a ponte mais longa que atravessei. E é, ao mesmo tempo, uma emoção, um mundo interior de sensações que me questionam sobre o que será estar de fato junto do leitor brasileiro. É um enorme prazer e também um risco. Mas confesso que está a ser uma viagem fascinante. E devo agradecer a possibilidade desta viagem aos editores da Landmark, Jorge Cyrino e Fábio Cyrino que, na sua imensa generosidade, editaram e estão a promover por todo o Brasil este “Gabinete de curiosidades”.
– O leitor brasileiro vai se identificar com sua escrita?
– Espero que sim, que se identifique com esta escrita. Tenho alguns seguidores brasileiros jovens, muito jovens, no Facebook e que leram alguns dos textos que compõem este livro. E as suas reações são entusiasmantes e estimulantes. Creio que esta linguagem está esteticamente muito mais próxima do sentido de liberdade que o povo brasileiro tem da sua existência do que de um certo conservadorismo europeu associado a uma ideia de literatura do mainstream que domina o mercado na Europa.
– Além de escritor, Luís Filipe Sarmento é tradutor, jornalista, editor, professor. Encara suas várias facetas da mesma forma?
– Encaro-as com o mesmo entusiasmo. Imagine o que é receber um livro do Lipovetsky para traduzir, o empolgamento que se gera com o desafio de interpretar para uma outra língua o pensamento de um autor francês. O jornalismo foi, por outro lado, a minha escola, o berço da minha escrita; o jornalismo é a disciplina superior da literatura onde nos confrontamos com o real e a partir do qual temos de contar uma história que chegue a toda a gente. Quanto à edição, foi uma aventura tão estimulante como escrever. Mas também no cinema e na televisão como realizador, o que me levou a criar no início da década de 90 o conceito de videoclip de livros. Produzi e realizei 500 videoclips de livros para a televisão portuguesa. O ensino é uma atividade intermitente, mas igualmente estimulante onde aprendo mais do que ensino.
– Acompanha a literatura brasileira? Quais os autores brasileiros de sua preferência, e o que chama sua atenção nas obras desses escritores?
– A literatura brasileira esteve sempre presente desde a minha adolescência. Os grandes escritores brasileiros chegavam facilmente a Portugal. Nomeá-los seria elencar uma lista numerosa. De Guimarães Rosa a João Ubaldo Ribeiro, de Carlos Drummond de Andrade aos irmãos Campos, do telúrico Jorge Amado à surpreendente Clarice Lispector. Em todos os escritores brasileiros que li, o que mais me fascina é o sentido de liberdade como o principal bem do homem contra todas as tentativas de coerção do pensamento.
“Creio que a relação das duas literaturas foi sempre de estímulo mútuo. As trocas constantes de ideias e, depois das nossas ditaduras, a aproximação dos seus criadores foi decisivo no conhecimento que temos do que se faz nos dois países. No tempo presente corremos o risco de se criarem equívocos a partir do marketing dos prêmios que nem sempre é justo e honesto. Também é verdade que os escritores brasileiros já entraram com mais facilidade no espaço português do que agora, ainda que haja tentativas por parte de algumas editoras portuguesas de dar a conhecer as novas tendências da literatura brasileira.”
– Como se dá a relação entre a literatura brasileira e a portuguesa na contemporaneidade?
– Creio que a relação das duas literaturas foi sempre de estímulo mútuo. As trocas constantes de ideias e, depois das nossas ditaduras, a aproximação dos seus criadores foi decisivo no conhecimento que temos do que se faz nos dois países. No tempo presente corremos o risco de se criarem equívocos a partir do marketing dos prêmios que nem sempre é justo e honesto. Também é verdade que os escritores brasileiros já entraram com mais facilidade no espaço português do que agora, ainda que haja tentativas por parte de algumas editoras portuguesas de dar a conhecer as novas tendências da literatura brasileira. E o mesmo se passa com a literatura portuguesa que se divulga agora no Brasil. A ter em atenção que nem tudo o que brilha nos estúdios de televisão é ouro. Estamos num momento importantíssimo das nossas relações culturais que não devemos deixar que se amordace pelas tentativas ditatoriais do controle comercial. A literatura não é comércio. Por outro lado, qualquer tentativa de censura é inadmissível. Para termos uma literatura livre, temos de ter acesso a uma comunicação social livre.
Sala de Leitura
Sexta-feira, às 10h05, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010)
“Gabinete de curiosidades”
Autor: Luís Filipe Sarmento
Editora: Landmark (160 páginas)