Murilo Mendes cada vez mais contemporâneo, agora na Cia das Letras
Um dos mais inventivos livros do poeta, “Poliedro” ganha reedição de uma das maiores editoras do país, gerando expectativa sobre o alcance do autor passados mais de 40 anos de sua morte
Fluorescente, Murilo Mendes irrompe 2017 com o frescor com que escreveu a própria história. “Não sou meu sobrevivente e sim meu contemporâneo”, legou o juiz-forano a posteridade. Em tons de rosa e azul vibrantes, seu penúltimo título publicado em vida, “Poliedro”, renasce com vistas às gerações que só perceberam o silêncio em torno do poeta morto em 1975, em Lisboa. Arejada, a capa da reedição que chega esse semana às livrarias anuncia um caminho de expectativas projetadas pela editora Companhia das Letras. Uma das maiores do país, a casa escolheu a obra de Murilo para o pacote de direitos comprados da extinta Cosac Naify, cujo trabalho de reedição da obra completa do escritor nascido às margens do Paraibuna, em trecho de terra “cercado de pianos por todos os lados”, foi iniciado em 2014.
“O projeto que havia na Cosac Naify reeditou muitos livros. Havia um cronograma de lançamento de várias obras, com uma abrangência muito grande. Se tivesse tido tempo, toda a obra teria sido editada e até mesmo trabalhos inéditos”, comenta Murilo Marcondes de Moura, escritor, pesquisador e professor da Faculdade de Letras da USP que, ao lado do pesquisador Júlio Castañon Guimarães e do editor Milton Ohata, assumiu uma curadoria que propunha, inclusive, reunir os textos sobre artes plásticas escritos por Murilo Mendes.
Segundo Moura, “a nova editora tem um projeto mais modesto. Eles não têm, ainda, uma definição sobre a reedição da obra toda”. Ainda assim, o selo atual possui a visibilidade mercadológica que há anos o poeta não desfruta. Publicado originalmente em 1972, “Poliedro” chegou a figurar na lista dos mais vendidos do “Jornal do Brasil”, de 26 agosto a 28 de outubro daquele ano, mas só retornou às prateleiras na antologia organizada pela italiana Luciana Stegnano Picchio em 1994.
“Achamos boa ideia começar a coleção MM com essa pérola pouco conhecida, que virou objeto de colecionador, raríssima de se encontrar nas estantes”, pontua Alice Sant’Anna, poeta e editora responsável pelo projeto de reedição. “‘Poliedro’ é um livro brilhante, inclassificável, que mistura poesia com uma prosa poética muito contemporânea – incluindo verbetes, aforismos e ensaios, com tom memorialista”, indica. “Murilo Mendes era capaz de congregar muitas facetas, e essa pluralidade torna seu estilo tão atraente e instigante, extremamente atual.”
Dividido em quatro setores – “Microzoo”, “Microlições de coisas”, “A palavra circular” e “Texto délfico” -, o livro se faz num campo inclassificável. “É impossível pensá-lo em termos de gênero. Não é escrito em versos, mas também não pode ser pensado como uma prosa tradicional. É um livro sobre animais, objetos, artistas, lugares, sempre com uma dimensão muito bem humorada e, ao mesmo tempo, com uma invenção da escrita muito grande”, analisa Moura, coordenador editorial do novo projeto ao lado de Castañon e Augusto Massi.
“Aquilo que inicialmente pode ser não mais que descrição é também uma forma de exposição condensada, concreta, despojada de desgastes líricos. Está aí, pelo menos em parte, aquela técnica que Murilo dizia buscar, tal como de resto ele sucintamente a sugeriu. Nunca, porém, excluiu o que é próprio de seu universo – a memória, a cultura, o imprevisível, as associações implausíveis, ou seja, a imaginação em liberdade. Na verdade, os textos acabam como autênticas antidescrições ou pelo menos como um desafio às descrições, assim como o menino experimental o é em relação às lições”, destaca Júlio Castañon Guimarães em posfácio do livro.
Escritor de amplitudes
Escrito entre 1965 e 1966 e publicado três anos antes de sua morte, em 1975, “Poliedro” carrega consigo o fim, não aquele das desesperanças, mas aquele dos despudores. “A vontade de recuperação dum mundo onde a crueldade, se não desaparecer de todo, ao menos não se torne organizada como neste século sinistro-grandioso”, escreve no fragmento intitulado “Colagens”. “Nesses livros finais, ele revela um acúmulo tanto da erudição quanto da liberdade com a linguagem”, observa o pesquisador Murilo Marcondes de Moura, identificando uma “perspectiva cultural adensada”, na qual não lhe fugiam características marcantes: “Murilo Mendes é um autor que sempre foi, de certa forma, experimental, que sempre buscou criar uma obra na divisa da poesia e da liberdade.”
Entre o memorialismo da infância em Juiz de Fora e dos muitos momentos de “quando eu era menino”, o livro reúne comentários de um intelectual robusto e, ainda, criações poéticas, imagens potentes e discursos filosóficos, como no setor “Microzoo”. “Até hoje não sei se a aranha é um estilo à procura dum assunto, ou um assunto à procura dum estilo; se concreta ou abstrata”, escreve sobre o bicho. “Trata-se de uma recuperação da vivência brasileira do poeta europeu, que está na Itália. Isso tem um sabor muito cosmopolita, muito inventivo com um plurilinguismo e ao mesmo tempo com um interesse pela vida em Juiz de Fora, pela passagem pelo Rio de Janeiro, pela experiência no Brasil”, defende Moura.
A forma em “Poliedro” parece atingir um nível de complexidade desconcertante – seja pela pontuação desregrada, como sentencia a própria capa da reedição, seja pela fragmentação dos assuntos. “Murilo Mendes sempre foi um artista muito preocupado com a forma. Seus primeiros livros, que são associados ao surrealismo, são tratados como se fossem menos preocupados com a forma. Houve muitas críticas, sobretudo nos anos 1930 e 1940, considerando o poeta mais como personagem e menos como artesão do verso. Acho que há um erro nessa perspectiva, porque acaba simplificando uma trajetória. Um grande poeta como ele foi, aos 30 já era um grande artista. Ele foi acompanhando os movimentos do século XX na Europa”, pontua o professor da Universidade de São Paulo.
Para além do que a caneta de Murilo Mendes registra, as dedicatórias reunidas em “Poliedro” complementam a percepção de um poeta que, no tiquetaquear do relógio amealhou sabedoria e também contatos. “No final da vida, de fato, ele tem muitos textos em homenagens, seja no ‘Convergência’, no ‘Ipotesi’, ele homenageia muitos artistas brasileiros e estrangeiros. Isso dá uma medida da amplitude do repertório dele. Ao lado desses nomes que ele cita no presente, continua citando os anteriores, decisivos em sua formação, como o Ismael Nery. Difícil pensar outro poeta, além dele, que tenha se aberto tanto para tantas manifestações artísticas. Uma das coisas que mais me fascina nele é essa amplitude de interesses”, comenta Murilo Marcondes de Moura.
Poeta em liberdade
Em artigo produzido no mesmo ano em que “Poliedro” chegava às livrarias, o escritor Affonso Romano de Sant’Anna destaca a relevância de pensar a obra de Murilo Mendes para além de identificações com correntes ou à procura de pares. “O melhor e mais difícil caminho seria a busca das diferenças que sua poesia marca em relação à própria série literária, porque, em relação à série social, sabe-se há muito que os poetas foram banidos da república. Nenhum poeta se instaura como sujeito se não descola dos paradigmas instituídos pela realidade. A escrita da poesia é exatamente o avesso daquilo que foi permitido. É a escrita da exclusão, do danado, do excêntrico, do outro continuamente versado por Murilo”, escreve Sant’Anna para um colóquio em Lisboa, festejando a oportunidade que o livro representava para uma maior visibilidade do poeta juiz-forano.
Repleto de reproduções fotográficas e pinturas, grande parte desse material pertencente ao local Museu de Arte Murilo Mendes e com uma inédita cronologia, a reedição de “Poliedro” acorda a expectativa que também se fazia quando o poeta recebeu o aclamado Prêmio Etna-Taormina – a maior láurea poética na Itália. Para o pesquisador Murilo Marcondes de Moura, contemporâneo, Murilo Mendes pode fazer muito sentido para a atualidade. “No momento, a literatura brasileira tem muita gente escrevendo, com valor, importantes e reconhecidos. Isso é um fator positivo para a poesia brasileira e favorece a leitura da tradição. É possível que haja um interesse por poetas como Murilo Mendes. Na universidade onde atuo, vejo que tem um conjunto de trabalhos razoável. Sempre tem uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado sobre ele, que tem uma presença na cena cultural e literária brasileira.
Quanto ao público leitor em geral, é difícil mensurar. Murilo Mendes sempre foi considerado uma espécie de poeta para poetas. O primeiro crítico a caracterizá-lo dessa maneira foi Otto Maria Carpeaux, que atribuiu a ele uma linguagem de compreensão mais difícil para um público mais amplo. Dizia que era alguém instigante, embora não tivesse uma audiência maior.”
Olho:
“Manipulo sempre, além do verbo comprar, o verbo perder; dialogo com a minha própria negação; temo alternativamente a cadeira elétrica e os fogos de bengala; atiço o conflito entre inspiração e estrutura; vejo-me empurrado pelo motor das musas (terrestres) inquietantes; hóspede dos enigmas; protegido pelo sense of humour, meu anjo da guarda; espero em vão o escafandrista ou o cosmonauta hors-série capazes de manifestar os tesouros ocultos da poesia, máquina construtora-destruidora; sei que Don Giovanni e o convidado de pedra se completam; observo a novidade das coisas debaixo do sol.”
Microdefinição do autor
“Minha mais remota ideia de eternidade talvez me tenha sido fornecida pelo queijo, que resumia aos meus olhos o círculo e a brancura, elementos básicos de eternidade, eu imaginava. Que decepção quando soube que o círculo já fora inventado há muito tempo! Julgava que o tivesse descoberto.”
O queijo – Microlições de coisas
“Tão forte era o meu instinto de liberdade que abria todas as gaiolas em casa do meu pai ou de outros; pelo que passaram a suspendê-las bem longe do alcance de minhas mãos. Escrevi certa vez uma carta ao prefeito da cidade, propondo-lhe a libertação dos presos da cadeia local.// Queria também “soltar” o morro do Imperador, que domina Juiz de Fora. Não me conformando com a ideia do morro preso por falta de fé dos homens, tomava ao pé da letra a palavra do Evangelho segundo a qual montanhas emigrariam se a dita fé fosse mesmo grande. Hélas! Nossa pequena fé acha-se condicionada por uma igualmente pequena imaginação; falta-nos a prodigiosa imaginação dos santos.”