Do escritório ao cemitério

Por Wendell Guiducci

Aos 14 anos consegui um emprego muito bom. Desenhava projetos para um engenheiro.

Trabalhava em uma sala de edifício comercial – com elevador, o único da cidade -, e não em escritório de contador ou fábrica de móveis, como a maioria dos meus colegas.

Trabalhava na prancheta e não no torno.

Usava canetas nanquim, réguas e compassos, e não lima, grosa e lixa.

Era o fino da bossa.

Mas acontece que eu desenhava rápido e comecei a ficar a tarde toda à toa naquela sala do terceiro andar, o que me incomodava bem.

Certa tarde, após o expediente, para resolver o dilema entre expor a situação ao engenheiro (o que por certo causaria a dispensa de meus serviços) e fingir de morto (o que acarretaria uma espécie de óbito interno), caminhei para o cemitério municipal, onde, longe do barulho da hora do rush caipira, carros, cachorros, vendedores de picolé, motos, crianças, carroças e bicicletas se espremendo pelas ruas, poderia botar os pensamentos no lugar.

É preciso paz para meditar, e lugares de morte são prodigiosos no quesito silêncio. Assim são os cemitérios, os hospitais, os consultórios médicos sem televisão ligada na Fátima Bernardes.

Os consultórios porque as pessoas ali têm medo de estar a caminho da morte.

Os hospitais porque os pacientes estão de fato lutando contra a morte.

E os cemitérios porque os inquilinos já estão mortos mesmo.

A ideia de morte favorece a reflexão.

Não é à toa que dizem que, na iminência do suspiro final, a gente vê a vida passar toda como um filme em frente aos olhos.

É a reflexão derradeira.

Ainda hoje é inevitável para mim, se eventualmente caminhando entre catacumbas, mirando lápides, mergulhar em pensamentos nada funestos e voltar à tona com uma resolução, uma letra de música, um plano, um novo mote para uma crônica, uma nova meta para a vida.

Não é que haja potencial criativo ou filosófico nas necrópoles em si. Mas no silêncio fúnebre o pensamento se organiza e alguma iluminação pode fagulhar. Tipo fogo-fátuo.

Pois bem, saí do cemitério decidido.

– Tenho pouco serviço pra essa agilidade -, disse o homem.

Despedimo-nos amistosamente e logo me empreguei em um escritório de contabilidade, onde nunca ficava. Estava sempre em minha Caloi Barra Circular levando bilhetes de cobrança aos quatro cantos da cidade incandescente.

Do cemitério guardei o ensinamento do silêncio.

Do escritório de engenharia, todo apreço pelas canetas nanquim.

 

nanquim

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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