Partes do todo


Por MAURO MORAIS

07/04/2013 às 07h00

Documentário aborda o cotidiano das profissionais

Documentário aborda o cotidiano das profissionais

O filme já havia terminado. Rolado alguns créditos, volta à cena o narrador: "Enquanto viveu, ele se ocupou com seus nobres e suas castanholas. Foi salvo por coisas tão gratuitas quanto a dança no parque de que gostava tanto. Com elas, quem sabe?, pôde suportar a melancolia de quem suspeita que as coisas não fazem mesmo muito sentido". Na voz de seu irmão Fernando, o diretor João Moreira Salles conclui sua ode ao mordomo Santiago Badariotti Merlo, que dedicou 30 anos de sua vida aos cuidados da família do cineasta. Saindo das sombras de uma herança escravocrata, empregados domésticos ganham, paulatinamente, espaços de visibilidade nas artes brasileiras. A reboque de um dos passos mais importantes para a conquista de seus direitos trabalhistas, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) promulgada na última terça, esses profissionais adquirem a legitimação e assumem vozes próprias, revelando o mundo por trás das funções na casa grande.

Filmado em 1992 e finalizado 13 anos depois, o longa "Santiago" revela um homem lúcido apesar de seus 80 anos. Já aposentado, morando num pequeno apartamento no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro, o trabalhador que dá nome ao filme recorda suas paixões e desejos, no que é considerado, hoje, um dos mais importantes documentários da cinematografia nacional. Apesar de evidentemente reverenciar a figura do funcionário, a produção se consagrou por revelar toda a artesania do filme, além de não esconder o processo de redenção do jovem patrão, que, décadas depois das filmagens, percebe, de fato, a relevância afetiva, muito mais que prática, do personagem poliglota e altamente culto.

"É extremamente complexa e perversa essa relação de afeto misturado com trabalho", pontua o cineasta Gabriel Mascaro, que no documentário "Doméstica" também se debruça sobre o tema. No filme, sete adolescentes recebem o desafio de registrar, durante uma semana, o cotidiano das profissionais que trabalham em suas casas. "Mais do que filmar, proponho a negociação. Minha abordagem parte da premissa da experiência", destaca Mascaro, chamando atenção para essa relação trabalhista que, segundo ele, é inegavelmente negociada numa esfera íntima.

Utilizando-se do recurso metalinguístico, o diretor também equipara o procedimento das artes à labuta diária, sem romantismo e com a lucidez de que a produção se trata de um trabalho como os outros. "O cinema tensiona o mundo, e, a partir dessa potência, surge uma relação", reflete. "Não dá mais para imaginar os filmes só pensando em representação", aponta. Contudo é nela que as atenções devem se voltar para evitar que preconceitos e estereótipos se cristalizem. Segundo a professora do Departamento de Espanhol e Português da Universidade do Texas em Austin, nos Estados Unidos, e autora do livro "A doméstica imaginária", Sonia Roncador, "a inferiorização deriva tanto do legado da escravidão, numa sociedade em que serviço doméstico foi negativamente associado a ‘serviço de negras’, quanto do legado da dominação masculina, considerando que as trabalhadoras tiveram que lutar por décadas para que nossa sociedade reconhecesse esse serviço como ‘trabalho’, e não uma simples e natural extensão dos atributos afetivos femininos".

 

Em determinado momento do documentário "A negação do Brasil", de Joel Zito Araújo, a atriz Ruth de Souza reivindica mais destaque para as mulheres negras na televisão e no cinema. "O problema não é representar uma empregada. O problema é associar o negro à condição de subalternidade e aos papéis de menor relevância", discute o diretor, apontando uma evolução nesse quadro. "A partir dos anos 1990, começa a surgir um novo ponto de vista. Avolumou-se, nos últimos anos, o conjunto de atores negros que representam o belo como protagonistas", aponta.

Para Araújo, tanto a trama de "Lado a lado", recém- transmitida na faixa das 18h, na Globo, quanto "Cheias de charme", sucesso retumbante das 19h canal, marcam avanços em relação ao tratamento dado aos profissionais domésticos. Porém, o cineasta e também doutor em ciências da comunicação chama atenção para um detalhe da novela das "empreguetes". Segundo ele, enquanto no Brasil 75% das empregadas domésticas são negras ou mestiças, na história a proporção era inversa.

Personagem indispensável à infância, Tia Nastácia, de "Sítio do pica-pau amarelo", de Monteiro Lobato, foi alvo de duras críticas no último ano, após a publicação de um parecer do Conselho Nacional de Educação, que, em resposta à ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), apontava teor racista em algumas passagens protagonizadas pela senhora. "Há exemplos da mulher negra servil/dócil, geralmente obesa, velha, solteira e sem filhos, em outras literaturas das primeiras décadas do século XX, como em ‘Menino de engenho’, de José Lins do Rego; ‘A idade do serrote’, de Murilo Mendes; e ‘Olhinhos de gato’, de Cecilia Meireles", destaca Sonia Roncador, que percebe Tia Nastácia como uma das encarnações da "mãe preta" contadora de histórias do modernismo brasileiro.

Reconhecida pelas altas doses de sensibilidade, Clarice Lispector é apontada por Sonia como uma das autoras a se atentar para possíveis preconceitos. "Clarice foi, certamente, uma das primeiras escritoras brasileiras a expor a cumplicidade, e decorrente culpa, da patroa no jogo de exploração do corpo-trabalho", explica, referenciando-se no livro "A paixão segundo G.H.", de 1964. No romance, após despedir a empregada e iniciar uma faxina na casa, G.H. se depara com uma barata, a qual esmaga e, barbaramente, prova. Numa passagem inicial do livro, a personagem dá pistas do arrebatamento que irá viver após encarar o trabalho da funcionária: "Ontem de manhã quando saí da sala para o quarto da empregada – nada me fazia supor que eu estava a um passo da descoberta de um império. A um passo de mim. […]Eu ia me defrontar em mim com um grau de vida tão primeiro que estava próximo do inanimado".

 

Segundo o professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UERJ e doutor em sociologia João Maia, a cultura cotidiana tem adquirido, cada vez mais, uma grande importância, não só da academia como também da mídia e da sociedade de forma geral. "Essa representação da mulher comum está ganhando espaço. Sempre temos brechas, seja na mídia, seja nas redes sociais. Estamos em um momento de diálogo. Não há minorias sem possibilidade de voz", pontua. "É preciso um diálogo com o povo e seus costumes. Na sociedade contemporânea, há pessoas que passam a bandeja, sim. É um trabalho como os outros", completa.

A voz a qual João se refere é a mesma que o cineasta Gabriel Mascaro pondera como algo único de seu falante. "Ninguém dá voz a ninguém. Ninguém é o bom samaritano", explica Mascaro. "Com o advento da chamada literatura afro-brasileira contemporânea, surgiram novas narrativas e maneiras de olhar a realidade tão próxima – e até então tão invisível – da vida pessoal e íntima das trabalhadoras domésticas", comenta Sonia Roncador, citando a obra de Conceição Evaristo como um desses expoentes, além dos livros "Só a gente que vive é quem sabe", da ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Recife Lenira Carvalho, e "Ai de vós!", de Francisca Sousa da Silva.

 

"Eu sei que não é assim. Separo a fantasia da realidade", afirma a profissional Ester Pereira, quando perguntada se as novelas de que tanto gosta representam, de alguma maneira, as verdades de sua rotina. Apesar de não constar como o principal atrativo dessas trabalhadoras, que não abrem mão do rádio, as novelas são a forma mais frequente para se alcançar o descanso. "Minha vida é corrida, tem as crianças e o trabalho de casa, não dá para parar e assistir televisão. Vejo quando posso", conta Valéria Pinheiro, há quase 15 anos trabalhando na casa de uma mesma família.

Se a tentativa da novelista Gloria Perez, de "Salve Jorge", era naturalizar o ofício, colocando a mãe da protagonista Morena como uma empregada doméstica, a ideia se frustrou no meio do caminho. Para a doméstica Dalva Maria de Oliveira, Lucimar (papel de Dira Paes) é "muito apresentada". "Ela fica uma semana sem ir no serviço", protesta Dalva, desfrutando da mesma opinião de Valéria, que acha a personagem "meio falsa". De acordo com Ester, quando há repercussão de uma personagem que exerce um emprego doméstico, a justificativa sempre recai na potência interpretativa das atrizes, e nunca na qualidade do papel. Prova disso, segundo ela, são as "empreguetes" que não defendiam o ofício, à medida que desejavam abandoná-lo.

Para Dalva, essa identificação com esses personagens, propagados aos quatro cantos como representantes da classe, não é alvo de suas atenções. "Nem presto atenção. Ninguém se parece comigo. E eu quero ser eu mesma. Não adianta querer ser quem não posso", reflete. "Na vida real, tem muita empregada mau humorada, e isso é normal, todo mundo é assim um dia. Mas nas novelas não existe isso, tem que fazer humor", completa Ester. "Não sei se o apoderamento que essa lei dá irá refletir no cinema e na TV. As telenovelas espelham o lado mais conservador da sociedade, mas tendem a ser mais simpáticas com as minorias", ressalva Joel Zito Araújo, apontando a mudança de perfil da TV aberta em prol da ampliação de mercado da TV fechada.

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