Outras ideias com Vânia Derby Dutra

Em agosto de 1978, uma Kombi, sem os bancos centrais, estancou na porta do Instituto Maria, em São Mateus, trazendo dez crianças com cerca de 1 ano, vindas da Febem de Belo Horizonte. As condições dentro do veículo eram as piores possíveis. Dos 50 pequenos que vieram, em viagens diferentes mas na mesma situação, Wellington com seus 7 meses era o mais debilitado. “Ele ficou um mês no hospital. Por ser o mais doentinho, começamos a pegar mais no colo. No primeiro mês, com o frio, eu o colocava nos braços, entre o casaco de lã e a blusa, e ele ficava quietinho”, recorda-se Vânia Derby Dutra, diante do homem com 38 anos. Das milhares de crianças que passaram pelos cuidados de Vânia e sua equipe, Wellignton foi o único a dividir o mesmo teto que ela. “Fui adotado naquele ano, e ela sempre me pediu para que eu a chamasse de vó. Dizia que eu tinha minha mãe e que era para eu sempre procurá-la. Ela nunca escondeu de mim a verdade. Tenho muito orgulho de ser filho dessa casa, dessa história”, emociona-se ele, que ganhou o sobrenome de Vânia, Derby, herdado do pai, Orvile, um homem que legou não apenas imóveis pela cidade, mas iniciativa e força. “Herdamos tudo”, afirma a senhora de 83 anos, querendo dizer da responsabilidade de cuidar do outro, da necessidade de progredir no assistencialismo e do dilema de arranjar fundos para o bem. “Sempre aperta. Aí a gente não dorme. A Prefeitura ajuda, e a iniciativa privada, também, além daqueles que cooperam mensalmente”, conta ela, que após a morte da irmã Rakel, em abril, comanda sozinha a gigantesca casa erguida em 1944 e totalmente reformada no último ano.
Orvile
Como Wellington, Vânia também cresceu no Instituto Maria. Era a casa do pai. “Ele nasceu em Rio Novo, numa família de 11 filhos. Meu avô era professor de francês na Escola Normal, e meu pai foi ser carroceiro. Com a inteligência, foi crescendo. Trabalhou na Casa do Neto, um secos e molhados que vendia de tamanco a comida. Ele chegava às 6h, trabalhava até as 20h e subia para a Academia de Comércio, onde estudava para ser guarda-livros (hoje, contador). Passou a trabalhar na Construtora José Abramo e começou a entender de negócio. Casou com minha mãe, uma costureira, e foi prosperando”, conta Vânia, sobre o homem que construiu para si e para os outros. “Meu pai fundou a Fundação Espírita João de Freitas, o Instituto Jesus, o Centro Espírita Venâncio Café, a Sopa dos Pobres, o Grupo Espírita Amor aos Desencarnados e o Instituto Maria. Para fundar uma casa com o nome espírita há 85 anos, como foi com o João de Freitas, ele levou muita pedrada. As freguesas da minha mãe, para fazerem roupas com ela, tinham que pedir licença ao bispo”, ri a mulher. “Meu pai é quem comprou esse terreno. Aqui era uma fazenda, um espaço de morro e foi ele quem tirou cinco mil carroças de terra”, lembra-se. Após sete horas de viagem, Orvile desembarcou no Rio de Janeiro e foi bater na porta de um ascendente arquiteto. “Ele pediu um corredor com vidros dos dois lados, para que olhasse o interior sem precisar abrir a porta”, diz Vânia sobre o pedido do pai feito a ninguém menos que Oscar Niemeyer. “Meu pai era um atrevido”, brinca. “Garanto que ele está sentado ao meu lado. Não é metidez, mas não é qualquer um que tem um pai assim”, emociona-se ela, que há 43 anos despediu-se de Orvile e, há 33, de Aracy. Por que ele quis abrir uma instituição como essa?, pergunto. “Só lá em cima explica.”
Lívia
Lá em cima, onde está a explicação para a solidariedade do pai e para a afeição de Vânia por Wellington, também está Lívia. “Casei muito cedo, aos 17, com um viúvo que já tinha dois filhos. Saí da escola, onde estudava para contadora, e fui casar. Logo depois, fiquei grávida e tive varíola, com três meses de gestação. Deu a doença por dentro e por fora. Abriu feridas no meu corpo todo, sola dos pés, gengiva, nariz, olhos, debaixo da unha. Foi tão forte que quando colocaram o termômetro em mim, ele estourou. Cinco meses depois, a neném nasceu, com a doença, mas só viveu três dias. Dois anos depois, tive que tirar meio metro de intestino, por conta da varíola”, recorda-se Vânia. “Oito anos depois de seu desencarne, a Lívia veio numa reunião mediúnica me agradecer por aquele tempo que ficou ao meu lado. Era o resgate que nós precisávamos.”
Zenilda
No mesmo prédio onde atende 147 crianças, de 0 a 5 anos, comprovadamente carentes, das 7h às 17h, e onde trabalham 35 profissionais, Vânia difunde a doutrina da qual o pai foi um dos maiores incentivadores em Juiz de Fora. Às segundas, terças e quartas, funciona o Centro Espírita da associação sem fins lucrativos, com estudos literários, reuniões mediúnicas e palestras públicas. “Fico mais três anos. Mas não penso muito no futuro. O que me interessa é o presente”, adianta-se ela, frente a frente com Wellington, que vindo do passado, quando a casa funcionava nos moldes de um internato, prepara-se para ser o futuro. Na época em que cerca de cem crianças viviam 24 horas no espaço, Orvile construiu um cinema, o Cine Paraíso, para servir de renda-extra para a instituição. Tempos outros: Vânia e a irmã Rakel procuraram outros meios. Wellington encontrará, ainda, outros. Caminhos para servir. “Não zelamos somente por essas crianças, as ensinamos a viver. Damos a base. E é uma alegria encontrar os meninos e meninas que passaram por aqui. Criei seis filhos da Zenilda. Todos deram certo. Há pouco tempo, ela trouxe o último filho para que ele se lembrasse de mim. Já está com 16 anos”, conta a avó dos filhos de Zenilda, de Wellignton e outras milhares de crianças.