As bicicletas e a questão da mobilidade urbana


Por Gerson Romero de Oliveira Filho, geógrafo e professor

04/10/2016 às 07h00- Atualizada 04/11/2016 às 14h14

Houve um tempo em que as bicicletas dominavam a cena urbana. Era o principal meio de transporte da população assalariada. Os operários das fábricas realizavam seus deslocamentos diários utilizando as bicicletas. Ir à igreja, namorar, entregar o pão, fazer compras, ir à escola e jogar futebol de várzea também demandavam o uso da bicicleta. As bicicletas eram extremamente multifuncionais. Na garupa e no quadro, cabiam tudo e todos. Quantos passeios, quantas aventuras, bons tempos. Pedalar era uma atitude saudável e prazerosa.

Passei toda a minha infância e a adolescência em Cataguases. Uma cidade onde o ritmo da vida era regulado pelo tempo das indústrias. A cada apito das fábricas, em intervalos regulares de cinco ou seis horas, tínhamos as trocas de turnos de trabalho. As ruas se enchiam de operários com suas bicicletas. Verdadeiros batalhões de ciclistas se dispersando pela cidade após uma exaustiva jornada de trabalho. Mas era possível pedalar com uma certa segurança, afinal eram tempos mais lentos. Os ciclistas compartilhavam as ruas e avenidas com os automóveis e até com o trem. Não existia sinalização específica, e os termos “ciclovias” e “ciclofaixas” não faziam parte do vocabulário de quem pedalava e nem das autoridades que administravam a cidade.

Mas esse tempo passou, muitas fábricas se modernizaram ou fecharam, dispensando grandes levas de operários. Em todo o país, as bicicletas foram suplantadas pelos veículos motorizados (automóveis e motocicletas). O ritmo das cidades ficou mais acelerado. Problemas como os congestionamentos, acidentes e poluição intensificaram. A mobilidade ficou severamente comprometida, transformando-se em um dos principais desafios para a gestão urbana.

No Brasil, de modo geral, o planejamento e a gestão do transporte urbano têm priorizado, quase exclusivamente, os modos de transporte motorizados em detrimento dos modos não motorizados e dos pedestres. O prof. Ricardo Abramovay (Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP; pesquisador do CNPq) afirma que o planejamento urbano acaba sendo norteado pela monocultura carrocentrista, cujo foco é a ampliação dos espaços de circulação dos automóveis individuais. Esses, atualmente, dominam a paisagem urbana ao mesmo tempo em que também são objetos de desejo cada vez mais comuns dos consumidores. A frota de veículos em circulação no Brasil aumentou consideravelmente, impulsionada pelos prazos mais longos de financiamento e, principalmente, pela redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), como ocorreu no período de 2012 a 2014. Mais veículos circulando significa mais congestionamentos, poluição e esforços de gestão para acomodar esse grande número de automóveis nos espaços urbanos, que, originalmente, não foram planejados para recebê-los.

Acreditamos que a atual cultura de planejamento focada em projetos de intervenções estruturais pontuais, tendenciosamente carrocentrista, não resolverá o problema da mobilidade. É preciso mudar esse paradigma. A construção de pontes, viadutos, túneis e trincheiras precisa se integrar a uma lógica sistêmica de planejamento que, por exemplo, priorize os esforços para ampliação e diversificação do transporte público coletivo. Enquanto isso não acontece, o problema da mobilidade se agrava. E onde entram as bicicletas? Diante de tamanha complexidade, a bicicleta, sozinha, não garantirá a melhoria da mobilidade. Na verdade, ela pode representar uma opção alternativa com benefícios econômicos, ambientais e de saúde para os ciclistas, desde que o ambiente urbano apresente baixos índices de poluição e seja mais seguro para pedalar.

Mas ainda estamos longe disso. As cidades brasileiras possuem poucas ciclovias, e não basta “carimbar o asfalto” (sinalização horizontal cicloviária) e dizer que agora reinserimos de vez a bicicleta no espaço urbano. É necessário um bom planejamento cicloviário, muita prudência e responsabilidade. Convocar a população para pedalar em avenidas congestionadas constitui atitude de alto risco. O ideal são as ciclovias, pois garantem maior segurança aos ciclistas. Mas como inseri-las em avenidas que não foram planejadas para recebê-las? Não há espaço sobrando. Por outro lado, as ciclofaixas e o compartilhamento exigem muita atenção dos ciclistas e motoristas, além de excelente sinalização e projeto de educação permanente, que envolva toda a sociedade para o trânsito seguro. Reafirmamos que o foco deve se concentrar no planejamento urbano integrado que contemple não só as formas urbanas mas também as dinâmicas territoriais, as vulnerabilidades ambientais, as possibilidades de conexões intermodais e os novos vetores de crescimento urbano, cujos projetos precisam incluir o transporte coletivo e as ciclovias. Só assim estaremos na direção correta para a melhoria da qualidade de vida nas cidades.

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