Cantos de luta guardados no coco
Da palmeira saem as palhas, que cobrem as casas. Do talo das folhas, erguem-se cercas nos quintais. Com a “carne” do coco da mesma árvore, faz-se um amido para mingaus e bolos. Já as amêndoas resultam em óleo, que, por sua vez, permite a feitura do sabão. A casca se transforma em carvão. À sombra da árvore, que chega a medir cerca de 20 metros, formam-se vidas suadas. “Para nós, o babaçu é meio de vida. Temos uma luta muito grande, porque nos anos 1980 os grandes fazendeiros arribaram as palmeiras e ficamos sem ter o nosso sustento”, recorda-se Maria Nice Machado Aires, ou só Nice, uma maranhense de Penalva, com 62 anos vividos às voltas com os cocos.
Ameaçadas por uma oligarquia rural onipresente na história nortista e nordestina, as mulheres que viviam quebrando o coco para fazer alimento e dinheiro resolveram se juntar. “Resolvemos formar um grupo de mulheres para lutar contra a devastação do babaçu. Nós quebramos coco, trabalhamos na roça e cuidamos da casa. Não queremos parar de fazer o trabalho, mas queremos que ele fique sempre melhor”, diz Nice, uma das 300 integrantes do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, formado na década de 1990 e do qual teve origem o coral das Quebradeiras de Coco Babaçu, que desembarca nesta quinta em Juiz de Fora, para apresentação no Teatro Clara Nunes, do Sesc, às 19h30.
Do silêncio pelos riscos que corriam em áreas completamente abandonadas pelo Poder Público aos holofotes dos teatros de grandes cidades, as mulheres do Babaçu viajam o Brasil cantando e contando a união que lhes permitiu ter orgulho do que fazem. Convidadas pela entidade ligada ao comércio a integrarem o projeto Sonora Brasil, que reverencia a musicalidade regional, Nice, Dijé, Nonata, Moça, Dora, Cilene e Iracema representam não apenas as 300 quebradeiras do movimento, mas uma comunidade agigantada, ainda que invisível para o restante do Brasil. Segundo Nice, o babaçu é parte fundamental da cultura de pelo menos quatro estados: Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará.
Em casa, na roça, no mato: cantando
Carregando grandes cestos nas costas, feitos com a agigantada folha da palmeira, as quebradeiras adentram o mato, colhem os cocos e dão início a uma cantoria marcada pelo compasso do machado sobre a casca do fruto. “Cantávamos na igreja, na roça, no mato, nos encontros. Temos a música de infância, no tempo em que as pessoas ainda brincavam e os vizinhos conversavam nas ruas. E estamos resgatando as canções que criamos para reivindicar nossos direitos. Muitas músicas são tiradas de nosso sofrimento, de nossa luta”, aponta Nice, que, como suas amigas de ofício, sempre teve o babaçu como paisagem.
“Desde meus avós, temos a mesma atividade, a mesma cultura. E vamos passando para as gerações. Só no Maranhão somos 300 mil mulheres envolvidas diretamente com o babaçu”, diz ela, pontuando que, se considerarmos as ligações indiretas, o número torna-se assustadoramente ainda maior. Mãe de seis filhos e avó de 12, Nice comemora os tempos que permitiram trocar o machado pelo caderno. Todos os seus descendentes estudaram. Uma de suas filhas está prestes a se formar em biologia. A realidade é outra. “Estou tentando fazer o melhor para que meus filhos também possam trabalhar para fazer um mundo melhor.”
Tudo está nos cantos. E está em disco e livro, também, que exaltam dramas e conquistas das quebradeiras, mulheres-cantoras de uma transformação social. “Muitas cidades têm, hoje, a lei do babaçu livre e muitas de nós ganharam a terra para plantar e morar”, festeja Nice. “Agora estamos fazendo não só um circuito, mas um intercâmbio, mostrando e aprendendo. Em outros tempos, isso era inimaginável. Para nós, é um trabalho bom, porque nos unimos, viajamos e temos amor por ele. A gente se sente família”, conta Nice, que no palco canta: “Tu já sabes que não pode derrubar, precisamos preservar as riquezas naturais. O coco é para nós grande riqueza, é obra da natureza e ninguém vai dizer que não. Porque da palha se faz casa para morar e já é meio de ajudar a maior população. Ei, não derrube essas palmeiras. Ei, não devore os palmeirais.”
QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU
Nesta quinta, às 19h30
Teatro Clara Nunes, Sesc (av. Barão do Rio Branco 3.090 – Centro)