À espera da bala
Do sofá, minha mãe contou: um, dois, três. Da janela, minha irmã viu: estava lá, a alguns metros, um corpo estendido no chão. Era Caio. Eram cinco os tiros. Acima dele, era a mãe, tão impotente quanto eu, que passava minutos depois pelo mesmo lugar onde ando diariamente. Impressionada, minha filha falava dos bandidos. Assustado, eu questionava o ponto a que chegamos. Indignada, minha mãe clamava por um novo endereço. Minha irmã tremia. Era início de noite, um domingo, na esquina da Olegário Maciel com Monsenhor Gustavo Freire, onde milhares passam todos os dias.
Num instinto primitivo, procuramos o culpado, como se o dono da arma levasse consigo a paz das ruas. O que está em jogo não é a simplista rivalidade entre comunidade trabalhadora e bandidos. Ou deixemos de apontar o dedo para estender as mãos ou continuaremos reféns de uma guerrilha que não acaba quando fechamos a porta de casa.
A questão é: como explicar à minha irmã a vigilância ostensiva das equipes olímpicas num hotel a poucos quilômetros de seu lar enquanto sua rua permanece esquecida? A mesma rua onde, há cerca de um mês, quando ela e minha mãe voltavam de um passeio, um homem passou atirando de dentro de um carro em direção a um jovem bem ao lado delas. Leoa, minha mãe se abaixou, abraçou minha irmã e aguardou. Depois, seguiram.
Como continuar seguindo? Dessa vez, a bala calou um homem, uma mãe, uma família e uma vizinhança. E silenciou minha irmã, que em seus 11 anos já sente o gosto amargo que algumas balas podem ter. Dessa vez, foi na esquina da minha rua, foi na porta da casa da minha mãe, foi no chão em que eu piso, foi na nossa coragem de continuar passando por ali.
Minha irmã, seus vizinhos e todos nós que avistamos a cidade do alto do morro valemos menos, parece dizer o Poder Público. Valemos menos no Dom Bosco, no Santo Antônio, no Jóquei Clube III, no Jardim Natal, só para recordar o último terrível e brutal fim de semana. Valemos menos, mas servimos. Minha mãe serve como costureira; seu marido, como porteiro; eu, como jornalista.
Depois de servir, nos enjaulamos, encurralados e, ainda assim, vulneráveis. Vítimas somos todos do revólver de um Poder Público que escolhe a omissão em vez de assumir as rédeas de uma sociedade doente. Em vez de acreditar na regeneração, apostar na cultura como impulso transformador, oferecer caminhos dignos e nobres.
Numa verdadeira miopia social, enxergamos um noticiário violento e nos negamos a abrir as janelas para sentir o cheiro da pólvora. Culpados somos todos, num egoísmo contínuo de não perceber que o terror que aflige o outro acinzenta toda a cidade. O risco é partilhado, enquanto a dor relegamos ao outro, sem misericórdia. Menos um! Menos um?
Queria dizer à minha irmã: “Segurança é a certeza de que a vida pode ser feliz”. Infelizmente, é isso que nos é tomado quando o Poder Público nos olha e não nos enxerga. Na minha turma da escola pública, formamos todos, trabalhamos todos, nos alegramos todos. A despeito da expectativa pública, nós, pobres, servimos. Demos certo quando o destino nos dizia não. Chegamos longe quando o distante era a pouco mais de um passo.
Caio, que não conheci vivo, não teve tal sorte. Caio, que conheci morto, teve apenas a invisibilidade, que vai enterrá-lo nas estatísticas. Caio, de que só soube o nome pelo noticiário, seria pai daqui a alguns meses. Será lembrado pelo filho nascido, pelo filho aguardado, por toda a família, pelos amigos e pela minha assustada irmã. Quando sair e quando voltar, minha pequena Clarice se lembrará do corpo que levou a bala também prometida para nós.