Entrevista Luiz Ruffato, escritor
No 12º livro, Luiz Ruffato consegue, ainda, surpreender. Vencido o desafio de publicar a pentalogia “Inferno provisório” sem cansar o leitor e sem esgotar-se, o escritor nascido em Cataguases, formado em jornalismo pela UFJF e radicado há décadas em São Paulo, reafirma com o recente “Flores artificiais” (editora Companhia das Letras), seu projeto de rompimentos. Na obra, Ruffato diz reescrever as memórias de um certo Dório Finetto (realidade ou ficção?), que roda o mundo em viagens de negócio. Na primeira lembrança do livro, surge Juiz de Fora, terra que o personagem andarilho Bobby escolheu viver e morrer.
Autor de “Eles eram muitos cavalos”, um dos principais títulos da literatura contemporânea brasileira, Ruffato se renova em forma e conteúdo. O preço? Obras traduzidas mundo afora, transpostas para a linguagem cinematográfica (dois filmes baseado em sua produção estão prestes a estrear), e viagens e mais viagens divulgando, internacionalmente, sua escrita.
“Hoje, quando não estou viajando, metade do tempo passo em Porto Alegre, e a outra metade, em São Paulo”, conta, referindo-se à cidade da namorada e para onde cogita mudar-se. De passagem por Juiz de Fora para autografar o novo livro, na última terça, no Museu de Arte Murilo Mendes, Ruffato conversou com a Tribuna e falou de sua carreira, seus projetos e sua relação com Minas Gerais.
A cada ano mais consolidado como um dos maiores nomes de sua geração, o escritor que hoje desfruta da honra de ser jurado em um dos muitos prêmios vencidos – o Portugal Telecom -, não perde suas remotas memórias de vista. A cidade que o acolhe para o lançamento de todas as suas obras, e que o formou para o mundo, agora é projeto literário. Ruffato ainda espera nos surpreender muito mais.
Tribuna – Qual é a sua relação com Juiz de Fora?
Luiz Ruffato – Para falar a verdade, minha relação com Juiz de Fora é melhor do que com Cataguases. Talvez essa questão seja psicanalítica. Minha relação com Cataguases é a de uma pessoa que não é de lá. Minha família é de Rodeiro, e não tenho família lá, apenas uma irmã. A cidade é o cenário privilegiado de todos os meus livros, então, é uma relação dúbia, complexa, que tenho com Cataguases, de rejeição e atração ao mesmo tempo. Juiz de Fora, não. Foi aqui que estudei, e os melhores anos da vida da gente são aqueles em que passamos estudando. Foi aqui que descobri a literatura, comecei a escrever, fiz amigos com os quais mantenho ligação até hoje. Uma turma que foi uma dessas coincidências incríveis da minha vida: uma geração na qual todo mundo acabou acontecendo. E essa não vai ser a única vez em que vou tornar Juiz de Fora personagem ou cenário de um livro. Ainda tenho um projeto, não sei quando será feito, de escrever um livro, com um ano especificamente, 1978, no qual passei na cidade, morando em uma pensão na Avenida Rio Branco. Acho que aquela pensão era um microcosmo. Assim como, de alguma maneira, Cataguases é um microcosmo do Brasil, e “Eles eram muitos cavalos” tenta reproduzir um pouco desse país inteiro. Um dia ainda quero mexer nessa pensão. Inclusive, o Dório e o Bobby (personagens de “Flores artificiais”) passaram muito em frente a ela.
– E nesse livro você acha que o Dório consegue encerrar sua conexão com a questão do proletariado, te abrindo para uma nova fase?
– Não é uma preocupação minha ter ou não um compromisso com um tema específico. Sinto-me absolutamente à vontade para que meu próximo livro seja sobre conto de fadas, ou surrealista, ou de literatura fantástica. Tenho um compromisso com uma verdade, e ela não está em um tema, mas na minha busca por discutir a complexidade do ser humano. Escolhi, em determinado momento da minha vida, tratar sobre um extrato social específico, porque ele nunca tinha sido tratado pela literatura brasileira, ou talvez tenha sido tratado lateralmente. Foi uma decisão intencional. Esse filão não está esgotado para mim, mas, terminado esse compromisso que assumi comigo mesmo, sinto-me à vontade para dar um passo seguinte. Esse livro não significa nem rompimento nem esgotamento do tema anterior. Hoje tenho uma visão, influenciada pelos leitores, de que muito mais do que questões do proletariado ou de brasilidades, a grande questão que enfrento em meus livros é a do pertencimento. E isso não está ligado a uma classe social, mas a uma condição.
– Foi na poesia que você começou em Juiz de Fora. Ela ficou pelo caminho?
– Não ficou. A poesia é uma coisa tão séria e complexa que tomo muito cuidado. Publiquei alguns escritos quando morava aqui, mas aquilo não era nem exercício. Eram tentativas muito canhestras. Em 2002, publiquei um livro de poemas, “Máscaras singulares”, que já está no que considero minha bibliografia. No ano que vem, vou republicar esse livro, com mais alguns poemas que escrevi depois. Continuo escrevendo, mas bem pouco. Não é meu foco mais importante, até porque tentei trazer a poesia para dentro da prosa. Escrevo poesia quando sinto que não há como me expressar, a não ser nela.
– “Eles eram muitos cavalos” é considerado um dos mais importantes da literatura contemporânea nacional. Existe algum fantasma que te assombra para fazer um livro que seja tão marcante quanto ele?
– De forma alguma. Pode ser um clichê, mas para mim funciona: livro é que nem filho, não tem um que você goste mais ou menos. O “Eles eram muitos cavalos” é muito generoso, leva os outros com ele. Acho que um dos melhores livros meus é o “De mim já nem se lembra”, e ninguém conhece, porque ele teve errado seu posicionamento no mercado.
– E quando você revisa sua carreira, o que vem à mente?
– Tenho uma relação muito pragmática com isso. Fui tentar um lugar que me desse algum dinheiro para pagar minhas contas no final do mês e que me possibilitasse algum prazer. Por acaso, por sorte ou por outra razão, deu certo. Se não tivesse dado, teria feito outra coisa, teria continuado como jornalista. Para mim, escritor é um ofício como qualquer outro.
– Consegue identificar sua importância dentro da literatura recente?
– Não acredito nisso. Seria bobagem acharmos que podemos compreender a história no momento em que ela ocorre. É só ler um pouco da história ou alguns filósofos que percebemos que ninguém tem a capacidade disso. Sou um frequentador de sebos, o cemitério das vaidades. E, quando chego, o cara fala: ‘Olha, o autor mais importante…’, e ninguém sabe quem foi. Tenho que olhar para a frente, para o que vou fazer.
– Ao olhar para a frente, vê aonde quer chegar?
– Penso em construir algo que tenha uma coerência interna. Não uma coerência que me dê engessamento de pensamento, mas coerência de trajetória.
– Qual é seu diálogo com seus contemporâneos?
– Tento acompanhar como leitor, mas não penso em diálogo formal ou temático. Penso no que nós todos, juntos, estamos fazendo. E, pela primeira vez no Brasil, vejo que estamos fazendo uma literatura muito forte do ponto de vista da inventividade e com uma amplitude em termos temáticos. Se disso tudo vai sobrar alguma coisa? Não sei.
Palavras são chagas
Antes tarde… Nos últimos minutos do segundo tempo do ano em que se completam 50 anos do golpe militar, um livro joga luzes sobre uma produção que faz vivas as dores pretéritas. “Nos idos de março” (Geração editorial, 285 páginas) reúne contos – alguns breves, outros mais longos -, de 18 autores brasileiros que viveram e vivem, na pele ou no coração, o drama da ditadura militar. Organizada por Luiz Ruffato, a obra não se rende às lembranças românticas, nem sonega o lirismo presente na luta pela liberdade. Referencial antes mesmo do veredicto do tempo, a antologia demonstra a força e o vigor com que os intelectuais pensaram os anos de chumbo no país. “A verdade é que a história do Brasil no século XX é a história do autoritarismo, que a literatura nacional, quase sempre avessa à política, acompanhou apenas de maneira lateral”, escreve Ruffato, na apresentação em que denuncia o pequeno espaço reservado aos textos produzidos em razão do golpe.
Entre nomes mais conhecidos do grande público, como Nélida Piñon, Antonio Callado e Roberto Drummond, o nome do niteroiense Julio Cesar Monteiro Martins – autoexilado na Itália desde 1994 – destaca-se pela crueza e tensão de seu conto “A posição”. “Meu amigo Pedro morreu de cabeça para baixo, como uma galinha ou uma fruta madura. /Seus pés estavam amarrados por uma corda grossa, que se prendia a um gancho no teto. Suas mãos estavam atadas e quase tocavam o assoalho”, descreve o texto, logo em seu início. “Enquanto pendia, Pedro só conseguia pensar/ que sua mulher, sua mãe e seus filhos estariam vomitando desespero àquela hora”, enumera a certa altura, criando um ritmo sufocante e emocionante.
Enquanto Luiz Roberto Guedes, em “Dois cabeludos num jipe amarelo”, resgata o clima hippie misturado à forte opressão e temeridade do período ditatorial, Flávio Moreira da Costa, no conto “Manobras de um soldado”, reproduz o desconhecimento de muitos brasileiros em relação à política nacional. Wander Piroli em “Os camaradas” retoma com exatidão o autoritarismo militar ao escrever o diálogo realista, e por isso comovente, entre um policial e um homem que foi entregar um frango a um amigo preso. Autor de vozes estranhamente peculiares, João Gilberto Noll integra o livro com seu “Alguma coisa urgentemente”, conto denso sobre o filho de um homem silenciado.
Mais nova entre os escritores de “Nos idos de março”, Paloma Vidal aparentemente parece ser ponto de dissonância, por não carregar consigo a vivência da tortura. Em “Viagens”, a argentina radicada no Brasil aos 2 anos – por conta do exílio dos pais perseguidos -, narra os vestígios de anos inesquecivelmente sombrios e dolorosos. Talvez, por isso, Paloma encerre a obra. Nenhuma ferida deve ser esquecida desde que seja curada. E as palavras, nesse momento, passadas cinco décadas do golpe, servem como chagas. As palavras demarcam o que não está lacrado e escondido, e nem deverá ficar.