Nem tão firmes, mas fortes como sempre
Numa recente discussão, a personagem de Giovanna Antonelli, Atena, em “A regra do jogo”, dispara contra o protagonista Romero Rômulo, de Alexandre Nero, quando ele se diz um defensor dos marginalizados: “Você dá a Bolsa Sequestro, a Bolsa Assalto, o Vale Três Oitão, Minha Arma, Minha Vida”. Dual como é próprio das criações de João Emanuel Carneiro, autor do folhetim global das 21h, o personagem se estabelece na fronteira entre o bem e o mal, entre as utopias da burguesia e do proletariado, entre os signos da esquerda e da direita na política nacional. Ainda que no último ano tramas aparentemente apolíticas tenham ganhado mais destaque com números mais altos de audiência, como a bíblica “Os dez mandamentos”, o debate político continua forte nas telenovelas.
Programada para março de 2016, no lugar de “A regra do jogo”, a nova história de Maria Adelaide Amaral foi transferida para 2017, já que sua principal trama era política num ano eleitoral. Segundo o diretor de dramaturgia diária da Globo Silvio de Abreu, em nota oficial, o período de exibição poderia prejudicar a veiculação de determinadas cenas. No lugar, entra “Velho Chico”, novela de clima rural assinada por Benedito Ruy Barbosa. E são justamente as narrativas interioranas que dominam a programação do próximo ano: “Êta mundo bom”, de Walcyr Carrasco, para 18h; “Haja coração”, remake de “Sassaricando” escrita por Daniel Ortiz, às 19h; e “Joaquina”, sobre a filha única de Tiradentes, redigida por Márcia Prates, às 23h.
Para a professora da faculdade de comunicação social da UFJF, Cristina Brandão, a saída dos temas urbanos é um fenômeno natural e não reflete no declínio das produções. “O Brasil que vemos na televisão é o país do moderno e do arcaico. O país é complexo, e todos os gostos, inclusive os interioranos, contemplam a população. A novela nacional é feita para os brasileiros, enquanto as séries são, de alguma forma, universais”, comenta a pesquisadora, pontuando que nos anos 1970, auge do formato no país, “não haviam muitas opções de entretenimento como hoje”. “Houve uma dispersão do lazer do brasileiro, mas as novelas ainda estão fortes. Os próprios seriados estão se transformando em novelões, com tramas que não se encerram em cada episódio.”
Valores implícitos
A forma muda numa competição ferrenha que dia a dia mostra o vigor e o alcance de canais por streaming como o Netflix, mas o discurso, segundo o cientista político e professor da UFJF Paulo Roberto Figueira Leal, não deixa de perpassar a política. “Um produto cultural como as telenovelas colocam agendas em pauta na sociedade. Há muita discussão política implícita nessas produções. Quando falamos de política, falamos de valores, visões de mundo. Existem muitos debates que tem efeitos, inclusive, no modo como as pessoas compreendem a realidade”, analisa o estudioso. “Hoje há um discurso de desqualificação da política, defendendo que este é o lugar da sujeira, da corrupção.”
Para Cristina Brandão, uma forte tendência de linguagem nessas produções é a perseguição pela realidade crua. “Alguns autores beiram o neorrealismo, que era uma prática do cinema, com cenas muito próximas da realidade, mostrando assassinatos nas ruas, os bastidores do tráfico, os requintes de crueldades nos morros, se aproximando, assim, das notícias dos jornais, como faz João Emanuel Carneiro.” Tal recurso, que resulta em discurso raso e popularesco, acaba por demonizar a política e, de acordo com Leal, “faz as pessoas acharem que podem resolver problemas políticos sem a política”. “A ideia de que o universo da política é condenável, de que todos são políticos, não ajuda a resolver e imobiliza.”
“Temos sede de ficção”, afirma Cristina, certa de que os folhetins têm vida longa e são definitivos na vida cotidiana do brasileiro. Conforme Leal, a televisão ainda é um veículo decisivo nos processos eleitorais, seja de maneira subjetiva, seja objetivamente por meio do horário eleitoral gratuito. “É a TV que demarca que o tempo de eleições chegou, mesmo para aqueles que não estão em busca dessa informação. As campanhas invadem as casas, e o número de indecisos cai a partir da entrada do horário eleitoral gratuito”, explica. Buscando servir como retrato de uma sociedade, as telenovelas, então, não fogem do palanque, estando eles nos morros ou nos coretos.
‘Os artistas conseguem não deixar o silêncio’
Se hoje a teledramaturgia fala de política sem citar nomes, de maneira subjetiva e, por hora, perversa com a própria história, em outros tempos foi direta exatamente por excluir a ficção e assumir a linguagem documental. Em “Memory’s turn: Reckoning with dictatorship in Brazil” (University of Wisconsin Press), obra lançada em 2014, com previsão de chegar ao país no segundo semestre de 2016, a pesquisadora de literatura luso-brasileira e professora da Universidade de Tulane em Nova Orleans (EUA), Rebecca Atencio, se atém à minissérie global “Anos rebeldes” como expressão pioneira ao trabalhar com as lembranças negras da ditadura militar.
“Em 1999, li ‘As meninas’, de Lygia Fagundes Telles, ‘Campeões do mundo’, de Dias Gomes, e não via muitos trabalhos sobre a ditadura. Resolvi, então, pesquisar”, conta ela, que viveu seu primeiro seminário da pós-graduação justamente no dia 11 de setembro de 2001. “Isso me marcou profundamente e me trouxe interesse na questão do trauma, das torturas”, completa. Em sua obra, Rebecca defende o vanguardismo da trama de Gilberto Braga, sem deixar de criticar as muitas censuras internas realizadas na Rede Globo e a tentativa de confirmar a versão oficial dos militares ao dar-lhes personagens bons e pacíficos. Em entrevista à Tribuna, durante visita recente à UFJF, a pesquisadora que se encantou pela cultura brasileira, fala da força de nossas telenovelas e destaca a importância do olhar distante na leitura e transposição de traumas como os dos anos de chumbo, nos quais ser rebelde servia como condenação à morte.
Tribuna – O Brasil conseguiu superar a ditadura?
Rebecca Atencio – O país começou pelas reparações econômicas e só 40 anos depois criou uma Comissão da Verdade. Ainda que seja muito importante, essa iniciativa é tardia. Uma oportunidade foi perdida e não pode ser revivida. O José Miguel Wisnik tem uma citação interessante que diz: ‘A Comissão Nacional da Verdade deve ser a novela do horário nobre aqui’. Mas não foi. Sobretudo os jovens, se não participam de movimentos sociais, não sabem nada sobre o período.
– A arte brasileira deu conta de registrar esse momento?
– A primeira iniciativa de justiça de transição oficial foi em 1995. Portanto, há um vazio total em dez anos. Foi a arte que segurou, levantou as questões, tentando preservar a memória. A política foi a reboque. O mesmo aconteceu com o Holocausto, sendo necessário passar uma geração para que algo fosse feito, para que fosse possível lidar com o trauma. Os artistas conseguem não deixar o silêncio.
– “Anos rebeldes” (1992) é um marco nesse sentido?
– Naquele momento, foi a primeira vez que se dramatizou a ditadura no Brasil. Havia novelas que falavam desse período, mas de uma perspectiva contemporânea. Com a participação de Silvio Tendler, um grande cineasta que conseguiu filmagens inéditas da época, o horário nobre exibiu imagens de militares espancando pessoas.
– Esse vanguardismo é uma questão própria da teledramaturgia?
– Durante a ditadura quem escrevia as novelas eram dramaturgos saídos dos teatros por causa da repressão, como (Gianfrancesco) Guarnieri, Dias Gomes e outros nomes que conseguiram escrever histórias, inserindo as questões sociais. Depois disso surgiu a ideia de merchandising social, que diz respeito à introdução desses temas, e exige uma fórmula que a Rede Globo inventou. Em “Anos rebeldes” há um merchandising da memória, com as mesmas estratégias do social, mas com foco nas lembranças. Inclusive, a Bete Mendes, atriz que foi torturada e encontrou seu torturador no Uruguai, antes de começar as filmagens, fez uma oficina com os atores, que contam terem ficado marcados.
– A minissérie foi completamente vanguardista?
– Há um grande conservadorismo, inclusive de Gilberto Braga, que depois se disse um alienado para essas questões. O que critico mais no livro é o tratamento dado à guerrilheira, que, à medida em que entra para a luta armada, fica cada vez mais masculina. É um tratamento muito machista. A cena de morte da Heloisa, personagem de Claudia Abreu, deixa em aberto se a morte foi acidental, reproduzindo o discurso dos militares. Além disso, a minissérie os trata como pessoas boas, sujeitos paternais, e culpa os empresários.
– Em outras expressões artísticas houve êxito maior?
– No sentido de memória, de gerar mais debates, produzindo sinergias, “Anos rebeldes” é um dos melhores casos, até em termos de longevidade do efeito. Na abertura e na transição, temos livros de muito impacto, como as autobiografias de Fernando Gabeira, de Alfredo Sirkis, de Renato Tapajós, ou o projeto “Brasil: Nunca mais”. Contudo, são títulos que entram em detalhes, mas com uma visão problemática. Dou esses livros em sala para discutirmos como as pessoas constroem uma memória, mas não como relato verídico. No final dos anos 1980 há um vazio, como se as pessoas não quisessem saber sobre o assunto. Muitas biografias, escritas por jornalistas, foram feitas a partir do final dos anos 1990. Esses profissionais tiveram muito mais sucesso do que a Comissão Nacional da Verdade, tiveram muito mais impacto do que outras expressões artísticas.
– Uma nova geração, de filhos e netos, também tem realizado trabalhos sobre o assunto…
– Na Argentina temos uma produção de pessoas afetadas diretamente. Diferentemente, no Brasil, muitos não tiveram contato direto, mas se sensibilizaram. Atualmente estudo um coletivo de arte política de Fortaleza, com jovens na faixa dos 20 anos, que fazem intervenções. Um dia, eles embrulharam um presente com vários elementos referentes à ditadura, e uma das artistas se fantasiou de motogirl e levou até a base militar.
– Estamos no caminho de vencer os anos de chumbo?
– Concordo com o argumento da Beatriz Sarlo, uma crítica argentina, que diz que quando as vítimas produzem testemunhos, é como se fosse matéria bruta. E, só com os artistas, com uma nova geração ou com outras pessoas mais distanciadas, é que ganhamos em impacto. A memória precisa sempre estar se reproduzindo, senão viram relíquias. “Anos rebeldes” abriu um caminho.