Coisa de homem
Tudo bem olhar pra bunda da sua colega de trabalho, é coisa de homem. E não tem problema aquela pulada de cerca, homem tem suas necessidades. Claro que sua mulher não pode falar com outros caras, tem que se dar o respeito, ponha-a na linha. “O ciúme é o tempero do amor”, ela vai até gostar. Parafraseando o “cidadão de bem” e “exemplo de superação pelo esporte” goleiro Bruno, “Quem nunca brigou ou até saiu na mão com a mulher?”. Normal, “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.” Quanto à faca, todo dia o noticiário traz algum ex ou atual “companheiro” que a cravou na mulher que “amava”, por ciumeira, orgulho ou por não aceitar um fim de relacionamento. Coisa de homem – não de todos, mas dos que usam tal justificativa.
Por causa da persistência e da naturalização destas afirmações, das mais “amenas” às mais explicitamente agressivas, a abordagem do feminismo e da violência contra a mulher no último Enem foi decisiva para uma chance de virada (finalmente) positiva na educação brasileira. Por alguns minutos na vida, estudantes do país todo foram obrigados a pensar em porque ainda se bate tanto em mulher no Brasil, para mencionar o mínimo e mais raso dos recortes possíveis. Na mesma prova, foi mandatório refletir sobre o que Simone de Beauvoir falava quando dizia que “não se nasce mulher, torna-se”, sendo produto da resistência a uma realidade em que somos sempre tidas como menos.
A abordagem dos temas pelo exame pode até não reverter nosso machismo histórico, e prova disso foi a reação de parte da sociedade, chamando o Enem, entre outras coisas, de “doutrinário”. Depois de tantas gerações aprendendo com o ensino “não-doutrinário” que Cabral “descobriu” isso aqui, que o golpe militar foi uma revolução contra a barbárie comunista e que a Igreja participou de alguma guerra que fosse genuinamente “Santa”, é um alento pensar na possibilidade de uma formação calcada em questões mais humanas. Finalmente uma vantagem para nosso modelo de ensino, voltado ao ingresso na universidade: “Mas por que tenho que aprender sobre essa palhaçada de feminismo e sobre direitos humanos?” “Porque cai no Enem.”
No futuro, pode ser que não haja mais listas de mulher “pra casar” e “pra pegar”. Pode ser que paremos, homens e mulheres, de chamar de “piranha” àquela que faz o que bem entende de seu corpo e sua vida sexual. Talvez meninas expostas na TV não sejam objetificadas por machos atrás de telas virtuais. Quem sabe saias curtas e decotes poderão deixar de ser sinônimo de sinal verde para sexo não consentido, e a expressão “coisa de homem” pare de ser usada para justificar o inadmissível. Impossível prever o amanhã. O que já sabemos é que luta é sim, coisa de mulher, até caiu na prova. Quem errar essa questão não merece se sair bem no exame. Enem na vida.