Menor, porém forte
De forte, apenas a história. Menor que o piano moderno, todo feito em madeira, com as cordas mais finas e o martelo coberto de pelica, o fortepiano conheceu o estrelato e também o ostracismo.Pelas mãos de um respeitado fabricante de cravos e aclamado artista italiano que trabalhava para o Palácio dos Médici, em Florença, o instrumento surgiu tornando obsoleto o usual cravo. Ironias do destino, acabou conhecendo o mesmo caminho no século XX. Natural da italiana Pádua, em 1655, Bartolomeo Cristofori estava insatisfeito com aquele cravo que, ao beliscar das cordas, produzia um som limitado, incapaz de se tornar solista ou ocupar grandes espaços. Por volta de 1700 deu forma a um instrumento que pinçava as cordas num mecanismo com martelos e pedais, permitindo sons mais ou menos duradouros, muito mais dinâmico. Décadas mais tarde, o fortepiano tornar-se-ia o principal instrumento dos concertos. Das peças criadas por Cristofori, apenas três resistiram ao tempo (todas em museus, hoje), assim como os profissionais dedicados ao estudo do som que oscila entre o suave e o denso.
Nascido na paulista Tietê, Pedro Persone, há pouco mais de duas décadas, deixou-se tocar pelo sensível instrumento de medidas muito menores das do piano moderno, que conhecemos atualmente. “A diferença com o piano moderno é muito grande. Ele poderia ser considerado o avô deste piano. O fortepiano tem uma sonoridade menor do que o moderno, mas tem uma característica de articulação muito maior”, comenta o professor da Universidade Federal de Santa Maria, com passagens pelos Estados Unidos e Europa e sete discos no currículo.
Das origens que remontam à Cristofori e deságuam no austríaco Joseph Haydn, Persone conta um pouco da história afetiva da peça no concerto “Música vienense para fortepiano” nesta quinta, às 20h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm). Na “bagagem” o músico trouxe seu próprio instrumento, uma réplica que tem servido aos alunos da oficina que ministra também para o 27º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga. “Eu já tocava cravo e, em 1991, trouxe o primeiro fortepiano para o Brasil, na comemoração do Ano Mozart. A partir de então, comecei meu contato com o instrumentos. Fiz cursos de férias, aulas particulares fora do país, e meu doutorado, na Boston University, foi sobre o ele”, conta.
Objeto de pesquisa de Persone, a Coleção Thereza Christina Maria, esposa de Dom Pedro II, revela uma estreita relação do Brasil com o fortepiano, instrumento alvo da apreciação da imperatriz. “Eles foram muito frequentes na música no país no começo do século XIX. Inclusive, Padre José Maurício tocava cravo e também fortepiano e chegou a escrever um método próprio”, pontua o músico e estudioso, citando, também, o anterior interesse da Imperatriz Leopoldina, segundo documentação sobre a música pianística europeia possivelmente executada no país.
Mais que Mozart
Maria Leopoldina de Áustria conheceu as composições do tcheco Leopold Kozeluch, um autor reconhecido à altura de grandes nomes da música clássica. Conforme conta Pedro Persone, quando Mozart saiu da função de músico da corte de Salzburgo, na Áustria, Kozeluch, que fora professor de piano dos filhos do imperador austríaco, foi sondado para ganhar o dobro do que ganhava Mozart. O compositor que abre o concerto de Persone ajudou o fortepiano a ganhar o mundo, mas ele mesmo não ganhou.
“Ele é um dos que fizeram uma mudança do cravo para o fortepiano, um dos autores que mais influenciaram nessa operação. Ele foi professor da Imperatriz Leopoldina. Foi quem criou um idioma do fortepiano em Viena”, analisa o brasileiro, destacando o legado que tanto Leopoldina quanto Thereza Christina deixaram sobre o trabalho de Kozeluch e muitos outros. “Por ter sido provavelmente a única corte hospedada no Novo Mundo, temos essa vantagem diante de outros países da América.”
O austríaco Joseph Eybler e o theco Josef Antonín Štepán, que Persone executa na sequência, que também representam o auge do fortepiano na Europa. “Ele substituiu o cravo e passou a ser o instrumento que frequentou a casa de todo mundo para a instrução musical e para os concertos. Chopin morreu 40 anos antes do piano moderno e também tocou fortepiano. O piano como a gente conhece hoje é de cerca de 1870, ou seja, em torno de 80 anos da morte de Mozart e 50 da morte de Beethoven”, comenta o estudioso.
O peso da posteridade
À disposição do austríaco Joseph Haydn estava o fortepiano, para o qual compôs mais de 50 sonatas, dentre outras obras nas quais ele incluiu o instrumento. Músicos como Haydn acabaram por garantir a posteridade do instrumento, ao passo que nomes muito populares no século XVIII, como Leopold Kozeluch, não ganharam o mesmo prestígio após a morte. “Hoje as pessoas começam a entender que esse instrumento foi uma ferramenta essencial para Haydn e Mozart, dando uma cor e um sabor especiais às músicas deles”, aponta Pedro Persone, que reverencia Haydn na segunda parte de seu concerto.
Na segunda metade do século XIX, contudo, com o crescimento das salas de concerto, surgia, também, a necessidade de um instrumento ainda mais potente. “Necessitou-se de um piano que preenchesse o espaço, para isso, foi preciso colocar uma estrutura de metal que segurasse cordas mais grossas. O piano moderno ganha em densidade sonora e numa possibilidade de produção de duração do som muito maior do que o fortepiano, que é um instrumento no qual você consegue fazer articulação muito maior, o que é impossível no moderno, que tem cordas cruzadas e estrutura metálica”, diz Persone.
“Ele é um instrumento bastante desconhecido ainda. Hoje somos quatro ou cinco profissionais que se dedicam ao fortepiano no Brasil. Sou o único com formação acadêmica em fortepiano no país. Ele tem um campo completamente aberto e existem muitas possibilidades de pesquisa, mas somos poucos ainda. Precisam haver mais pessoas interessadas. O Festival nos ajuda nesse sentido”, avalia o pesquisador certo da força do “avô do piano”, menor em dimensões, mas gigante em história.
CONCERTO DE FORTEPIANO
Nesta quinta-feira, às 20h
Museu de Arte
Murilo Mendes
(Rua Benjamin Constant 790 – Centro)