A pontualidade nas exibições de cinema institui que, aos atrasados, cabe conformar-se com a perda. Negociação social que remonta ao início do século XX, com a criação das salas fixas, que ofereceram ao cinema seu lugar espetacular. O histórico como sala de exibição talvez tenha permitido ao Cine-Theatro Central a vivência da pontualidade em outras apresentações, que hoje ocupam sua agenda ao invés da sétima arte. “No Central, o público se acomoda com conforto e pode olhar para o teto, para os lados. É um espaço de apreciação, e o atraso não é grande. Raramente chega a meia hora. Mas esse é um perfil diferente das casas de shows da cidade”, observa o produtor do teatro Beto Campos. “São raros os atrasos, tanto do público quanto dos artistas. Houve um processo educativo, não foi preciso legislação para que as pessoas soubessem que se não fossem pontuais perderiam o espetáculo”, acrescenta Carlos Fernando Cunha, pesquisador, professor, músico e ex-diretor do local.
Sancionada na última sexta, 16, uma lei que exige a ampla divulgação e a obediência dos horários de apresentações culturais na cidade, com a sujeição de multas para descumprimentos, faz a mediação de uma negociação de múltiplas variantes. Segundo a justificativa do vereador Adriano Miranda, o horário é parte da oferta e deve constar de forma expressa no ingresso e em toda a publicidade relativa à apresentação. “Sendo parte da oferta, o horário de início deve ser rigorosamente cumprido, conforme estabelece o Código de Defesa do Consumidor – CDC. Só esse fato já embasa a necessidade de se estabelecer penalidades em caso de descumprimento do horário, independentemente de outras sansões legais”, argumenta o parlamentar, reconhecendo, no projeto, seu caráter de reforço do ordenamento jurídico nacional instituído em 1990.
Considerando o limite de atraso em 30 minutos, a lei em vigor propõe multa de R$ 5 mil para a primeira meia-hora de infração e R$ 10 mil para as frações de 30 minutos seguintes, cumulativas, porém restritas ao volume de R$ 55 mil, desde que o público seja maior que mil espectadores. Caso contrário, os valores são reduzidos à metade. O projeto, no entanto, pondera utilizando-se da subjetividade dos termos “caso fortuito” e “força maior”. Para a produtora Nívea Siqueira, há uma imprecisão no texto. “Existem os atrasos e os abusos. Pensamos que essa lei poderia ser sancionada de forma clara para os produtores de evento sobre o que seriam os atrasos abusivos. Não consideramos um atraso de 30 minutos abusivo. Pode haver problema no transporte e mesmo atraso do público, comum em Juiz de Fora”, comenta Nívea, profissional da Nomad Produções, que tem trazido à cidade grandes eventos culturais.
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Nos 20 anos do Cultural Bar, o produtor e músico Wesley Carvalho recorda-se de apenas duas ocasiões de apreensão com o horário: quando Erasmo Carlos, momentos antes de subir ao palco, teve que esperar seu maestro ser consultado num hospital da cidade, após passar mal; e quando Maria Gadú não conseguiu pousar de avião na cidade, por falta de teto, voltando ao Rio de Janeiro e refazendo a viagem de ônibus. “Mesmo sendo um caso fortuito é um desgaste para a produção”, avalia Carvalho. “O público tem que ser respeitado, porque é ele quem paga tudo. É preciso ter o horário de abertura do espaço e do início do show. Mas problemas podem acontecer”, atesta, resgatando a potência do Procon no resguardo da relação entre espectador e produto artístico.
As muitas vias da questão
“Produção cultural envolve agentes extras, pode ser o artista que atrasou, um acidente que aconteceu, uma chuva que impactou. A priori, a produção deve programar algumas variantes para respeitar o público pontual”, alerta o produtor do Cine-Theatro Central, Beto Campos, que em seu termo de compromisso firmado com o produtor de cada evento exige o atendimento ao horário estabelecido, com tolerância de 15 minutos. Campos destaca, ainda, a variedade de perfis de apresentações na cidade, bem como dos espaços que ocupam. O estabelecimento de um limite para atrasos confronta-se, também, de acordo com Nívea, com uma prática comum nas plateias, de desrespeito ao relógio.
“Tem artistas que não admitem atrasos, como o Ney Matogrosso, tendo gente do lado de fora ou não. É indiscutível. E o público dos shows dele acompanha isso. Mas tem outros artistas que costumam se atrasar. É preciso ter uma balança. Produção cultural funciona sob negociação”, defende a produtora, contando sobre a recente apresentação do Grande Encontro. No show que reuniu Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Alceu Valença no Capitólio, Nívea precisou barganhar com os veteranos artistas uma tolerância para que o público conseguisse entrar, já que parte dos espectadores chegou num mesmo período de tempo, atrasada, formando longas filas do lado de fora.
Segundo Wesley Carvalho, “o problema de alguns grandes shows que a cidade recebe está em reunir artistas que marcam três ou quatro eventos numa mesma noite”. De atraso em atraso, a cidade final é a maior penalizada. “Cabe ao produtor assegurar, num bom contrato, que a multa pelo atraso fique sujeita a esse artista”, defende o sócio e produtor do Cultural Bar, que em seu contrato estabelece o limite máximo de 30 minutos de atraso.
Ponto pacífico entre público e produtores, a divulgação do horário dos shows, em uma semana de vigência da lei, já é adotada por diferentes eventos. Outros, no entanto, seguem ignorando a legislação e desrespeitando o Código de Defesa do Consumidor. A duas semanas de sua realização, um festival que reunirá duas duplas e um cantor de sertanejo universitário, outro cantor de axé e um DJ não apresenta nas redes sociais e no próprio site de venda de ingressos os horários de cada apresentação. Responsável por eventos similares, com nomes de destaque no sertanejo nacional, a produtora é alvo de seguidas queixas relativas a atrasos de horas em seus shows. A Tribuna tentou contato telefônico com a empresa local, mas as ligações não foram atendidas.
Pedagogia da punição
“Como artista, percebo que essa é uma característica quase nacional, de um público que não se acostuma a chegar aos eventos no horário determinado. E vários fatores contribuem para o atraso. São questões bastante difíceis de serem julgadas por uma legislação. Quem vai julgar se houve má fé ou não?”, indaga Carlos Fernando Cunha. “Essa lei pode gerar um impacto, porque as multas têm um valor alto, e algumas produtoras podem deixar de fazer eventos por conta disso”, afirma a produtora Nívea Siqueira. “Multas como essa são arbitrárias”, concorda o músico e produtor Wesley Carvalho, apontando para o público como principal ferramenta para que grandes atrasos não aconteçam em apresentações na cidade. “Basta não voltar”, diz. “A lei não vai inibir o atraso”, ressalta Nívea, certa de que o público não se satisfaz com o palco vazio, tampouco o artista se compraz com a plateia despovoada. O interesse é coletivo, portanto.
O que está em jogo, para Carlos Fernando Cunha, é a maneira como se desenha o exercício da cultura na sociedade atual. Constantemente apontada como espaço de construção do futuro, numa acepção capaz de considerar seu viés formativo, a cultura, segundo ele, não versa com a punição como ferramenta educativa. Ela é, por si só, a ferramenta educativa. “As estratégias de educação no país são a partir da multa, do castigo. Já percebemos, nós que trabalhamos com a pedagogia, que isso não funciona bem”, critica Carlos Fernando Cunha, doutor em educação pela UFMG e professor da Faculdade de Educação Física, do Instituto de Artes e Design e da Pós-Graduação em Educação na UFJF. O próprio cinema, destaca o artista e pesquisador, com os vídeos que exibe antes dos trailers, pontuando a necessidade de desligar os celulares, foi capaz de nortear as regras do convívio. “Há um processo educativo para o lazer”, ressalta, reivindicando para a cultura sua potência reflexiva e sua eficácia para a transformação.
Momento propício à reflexão
Ainda em discussão, o projeto de lei sobre o fechamento às 22h de bares infratores causa polêmica na cidade justamente por também reforçar legislações já vigentes, no caso, o código de posturas do município. Na justifica da proposta, o vereador Zé Márcio destaca a necessidade de “estabelecer um controle acerca destes estabelecimentos, propiciando que o Poder Executivo, a medida em que se constate os transtornos e a desobediência às normas de silêncio e convivência, bem como suscitação de autoridade competente de segurança pública, possa definir um horário diferenciado de fechamento”. Morador do Bairro São Mateus, numa região onde se concentram diferentes bares e cervejarias, o músico, professor e pesquisador Carlos Fernando Cunha retoma a urgência de medidas educativas ao invés de um castigo, em sua opinião, incapaz de coibir desrespeitos muito mais coletivos que institucionais.
“O que fazer com seu tempo de lazer? Grande parte do transtorno que vivenciamos no ano passado passa por essa questão. A menor culpa era do dono dos bares. Falta educação e disposição para conviver socialmente”, comenta Cunha, que, além de se deparar com urina e fezes na porta e no passeio de sua casa, lidava com o som alto de carros na rua. “Hoje a convivência é fraterna. Não me importa as pessoas estarem na rua, o que me importa é extrapolarem o sentido do convívio. Essa legislação não inibe o fluxo de pessoas na rua, não impede que um carro de som pare na minha porta com um som estridente”, pontua, reivindicando outras ponderações: “Historicamente, ele é um bairro essencialmente boêmio, desde a década de 1960, com gente nas calçadas tocando, música ao vivo e muita convivência social.”
Adequação acústica como princípio
Contrária ao movimento de vizinhos de bares infratores, que cobram resoluções efetivas para seus frequentes incômodos, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo posiciona-se pela retirada da pauta do projeto. “Juiz de Fora já dispõe de um conjunto de regulamentações que disciplinam o funcionamento dos estabelecimentos do segmento de AFL (Alimentação Fora do Lar), assim como a maioria das atividades econômicas realizadas no âmbito do municipal, o Código de Posturas do Município, nele já há previsão de multas e sanções. Caso o PLC 03/2017 seja aprovado no seu rito legislativo pela Câmara Municipal e sancionado pelo Executivo, a lei acabará por penalizar todo um segmento (AFL) em que a esmagadora maioria é cumpridora das normas em vigor”, argumenta, em ofício, o secretário João de Matos Neto, apoiado pelas entidades pró-bares, como o Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Juiz de Fora e a Abrasel.
De acordo com o produtor Beto Campos, as duas legislações que se apresentam para a noite juiz-forana sugerem reflexões profundas tanto para o público quanto para artistas e estabelecimentos. “Se os espaços querem receber pessoas, precisam se preparar”, sugere. Produtor e sócio do Cultural Bar, Wesley Carvalho defende o investimento em acústica como fundamental para qualquer espaço que abra publicamente suas portas. “Para abrir um negócio, é preciso se adequar. E, hoje em dia, essa adequação é ideal para qualquer estabelecimento, como um barzinho que transmite jogos de futebol. Esse é um passo importante para ter mais qualidade nas nossas casas”, aponta, garantindo que existe um controle de 110 decibéis na house mix (onde fica o operador de som) no Cultural, o que permite, inclusive, uma futura boa convivência com o hospital que está prestes a inaugurar a seu lado.
Para que Juiz de Fora não precise aderir à tendência nos grandes centros, incluindo o Rio de Janeiro, de bares e casas de shows que utilizam fones de ouvido para apresentações artísticas e restrições de horário e volume de conversas, o caminho, segundo o doutor em educação e músico Carlos Fernando Cunha é o diálogo: “Estamos num momento social tão difícil que questões como a tolerância estão colocadas de lado, como o bom senso, que marcou tanto a nossa cultura. Estamos marcados pelo esfacelamento das relações humanas. Seria tão bom se conseguíssemos conviver a partir de uma boa conversa.”