Artistas e amigos lamentam perda do baterista Big Charles
Baterista, multitalentoso e importante nome da cultura local, músico morre aos 73 anos
“Será que isso vive?”
“O Big sempre contava essa história de quando ele nasceu, uma história que ele ouviu da mãe, de quando era recém-nascido e franzino, e as pessoas temiam por sua vida”, diz a professora e escritora Leila Barbosa sobre o baterista João Carlos Guedes Pimentel, Big Charles. “Isso”, pronome que só é cabível para falar do artista se pensarmos em sua grandeza, que parece superar a de um homem comum, e ser tal qual uma entidade, “algo maior”.
“Isso”, de fato viveu – e muito. Aos 73 anos, Big Charles faleceu, nesta quarta-feira (17), na mesma Juiz de Fora em que tanto produziu e fomentou arte e cultura. Em seu trabalho como músico, que o tornou referência dentro e fora do país, tocou com grandes nomes como Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Monsueto de Menezes e integrou a banda de rock argentina La Pesada del Rock and Roll. Com as baquetas, também lançou o álbum solo “Retrato de cabeça” e “Ancestrais futuros”, em parceria com o saxofonista Glaucus Linx.
Fora da música, publicou outro “Retrato de cabeça”, homônimo ao álbum, um livro que flerta com a prosa e a poesia, mas não se restringe a qualquer formato. “Ele era um grande poeta, tinha uma escrita muito crua, era um artista e uma pessoa completamente sem censura. Suas palavras diziam exatamente o que ele queria dizer. Era como ele também era na música: sua bateria suplantava todo o resto da música. Assim era sua escrita. Como autor, ele era ótimo baterista. E vice-versa”, diz Leila Barbosa, que chegou a ler o manuscrito de um novo livro que Big pretendia lançar. Não deu tempo. “Era ainda mais emocionante, porque era muito forte, muito embasado na realidade. Li, revisei, adorei e devolvi, e ele me disse que ia ver as possibilidades para lançar”, conta a escritora.
O músico Edson Leão, que conheceu Big Charles no início dos anos 1980, recorda-se do baterista para além de sua musicalidade. “Fiquei impactado com a presença cênica dele, quando ‘incorporava’ a persona do ‘Caboclin da Lua’, e que lembrava um rito xamânico. Ainda que eu não tivesse muitos elementos pra interpretar o que eu tinha assistido, ficou um sentimento logo de cara, de que estava ali um artista que tinha uma relação com a arte que ia muito além da pura técnica”, comenta ele, que também se encantou pela faceta de poeta do artista, reiterando as palavras de Leila Barbosa.
“Quando me chegou às mãos, o ‘Retrato de Cabeça – Um Livro de Vira-Latas, Pedras e Deus’, eu chapei ao ver como ele tinha a mesma personalidade forte e única com as palavras que ele apresentava em suas performances com a bateria e na vida. Poemas curtos, sem meias-palavras, às vezes despudorados como os vira-latas, às vezes duros como as pedras e sempre inspirados (feito um deus?). Ali percebi que o Big tocava bateria como quem escrevia poesia (ou vice-versa).”
Em 2014, o baterista foi o personagem da coluna “Outras Ideias”, do repórter Mauro Morais, na Tribuna de Minas. Na entrevista, ele detalhou sua carreia, falou sobre a família, dificuldades e a importância da música na sua vida.
Abrindo a cabeças e portas de várias gerações
Além dos timbres e das palavras, Big Charles se dedicou também aos traços, passando muitos de seus dias pintando telas abstratas, algumas delas hoje materializando a saudade nas casas de amigos como o músico e médico Guto Mendes, que dividiu o palco e muitas histórias com o batera nos mais de 40 anos de sua amizade. “Tem um quadro dele no lugar onde a gente costumava tocar lá em casa, ele era um cara muito positivo, uma pessoa maravilhosa. Eu me encontrava com ele quase todos os dias, já estou sentindo muita saudade. Foi um cara fundamental para mim, para o Márcio Hallack… tocávamos muito juntos, e ele abriu a cabeça da gente, fez com que a gente ouvisse muita música brasileira instrumental, coisa que não fazíamos. Era um cara especial.”
Também médico e pianista, Márcio Hallack se lembra com carinho desta época e do amigo, usando, curiosamente, a mesma expressão empregada por Guto ao começar a falar da relação com o baterista veterano: “Abriu minha cabeça”. “Fizemos muitas coisas juntos. Ele olhava pra mim, e eu sabia exatamente o que ele queria musicalmente. Antes de tudo, o Big era um cara que aglutinava pessoas, um pós-moderno, um vanguardista. Era muito universal: entendia todo mundo, todos os movimentos culturais e das pessoas, era um ser humano ímpar. Foi como um irmão mais velho pra mim.”
Baterista e um dos sócios do Cultural Bar, Marcelo Panniset lamentou a morte do colega de baqueta, que o inspirou bem além do instrumento. “Ele deixou muitos seguidores e admiradores pela filosofia de viver a cada dia, como se fosse o primeiro e o último momento”, diz ele, que também foi transformado pelo encontro com Big, como Guto e Márcio, usando novamente o termo para descrever como a vida mudou depois disso. “Ele me abriu não só a cabeça, mas um portal de possibilidades. Nunca me esqueci de uma frase dele, em uma das dezenas de aulas que me deu: ‘Por mais que você estude e se dedique, sempre vai imprimir no instrumento o que você é. Então, antes de qualquer coisa, seja você de verdade, só assim será um grande baterista’. E eu tentei…”, relembra Marcelo.
O humor também é lembrado por todos que falam de Big Charles, sempre irreverente, apelidando a todos e aprontando. “Frequentávamos um bar e resolvemos fundar um bloco. Nessa galeria, tinha um bloco rival, que era ‘apenas’ o Bloco do Beco. Tínhamos uns 20 componentes no nosso, e a bateria era o Big Charles com um tarol. Eis que no dia de sair, que era o mesmo do Beco, o Big tem a idéia de fazer uma faixa: ‘O Bloco da ‘Clínica’ saúda o Bloco do Beco e pede passagem. Pra você ver o nível da pessoa”, relembra o amigo de longa data Chico Amieiro, que não hesita em destacar as maiores qualidades de Big: “Companheirismo e fidelidade”.
Guru de músicos e incentivador do cinema
Não fosse por Big Charles, talvez não houvesse o Lúdica Música!, um dos grupos musicais mais relevantes e de maior reconhecimento – internacional, inclusive – da música de Juiz de Fora. “Ele me pôs pra tocar no Jazz Clube Bar quando eu tinha 18 anos, com feras como ele, Goyaná, Mário Quirino e me dizia: ‘improvisa, neguinha! Vai, veinha!’. E eu ia. Depois de uma temporada lá, ele começou a falar de mim pra Rosana, e da Rosana pra mim, que a gente dava jogo… e assim começamos a trabalhar juntas. Foi ele quem mexeu os pauzinhos para que o Lúdica existisse. Era um cara muito querido, de muita personalidade, muito inesquecível além da música, uma figuraça”, conta a cantora Isabella Ladeira.
Muito emocionada, Rosana Brito reconhece a importância do “Caboclin” não só para a existência do Lúdica, mas também para os rumos de sua vida. “Para mim, marcou muito o fato de ele ser guru de tantas pessoas, ajudar tanta gente a entrar na arte, algo de que ele fazia questão. Muitas vezes ele foi incompreendido, marginalizado, porque só falava o que pensava, e vivia muito coerentemente com suas opiniões e posições. Às vezes era até cruel, porque ele era isso, tudo que um ser humano pode ser, e capaz também de uma enorme doçura. Minha vida jamais teria sido a mesma se ele não tivesse me aparecido quando eu tinha 17 anos.” Foi também com essa idade que o caçula do Lúdica teve seu rumo mudado por Big Charles. “Ele foi decisivo para que eu decidisse me tornar músico, artista, dar a cara a tapa. E fez isso por tanta gente que é um cara importantíssimo na música de Juiz de Fora”, conta Gutti, apelidado de “Balãozinho” por Big, falando ao lado de “Jararaca’ e “Jararaca Jr”, Rosana e Isabella, também alcunhadas por ele.
Poucos sabem, mas Big também se enveredou pelo cinema, fazendo trilha e som direto de alguns filmes, como conta Cláudia Rangel, diretora de “Habita-me se em ti transito”, em que o músico trabalhou. “Estava desesperada, porque nada andava no filme e quando o encontrei e disse isso, ele disse: ‘Calma! Vou te ajudar, vamos fazer esse filme aí'”, relembra ela, que conheceu o artista pelos idos de 2010, quando pensavam em fazer um filme em que Big narraria sua vida após a morte. “Era inspirado em Brás Cubas que acabou não saindo, mas esse encontro foi muito criativo. O Big tinha essa força, essa potência de incentivar a criação que encantava e inspirava”, diz ela. “Estive com ele na última vez em novembro, num dia em que cheguei na casa dele para almoçar e saí às três da manhã! Estávamos escrevendo um roteiro que ia se chamar ‘O velório de Big Charles’ e ele ia simular sua morte. Foi ótimo, divertido, um dia bem interessante e de muitas ideias. Uma boa despedida”, lembra-se ela, que fez as fotos que ilustram a matéria neste último encontro. Com tantos projetos que rondavam a morte, pergunto a Cláudia se o tema era recorrente para o amigo. “Nada. O Big pulsava vida, pulsava criação.”
A causa da morte não foi divulgada, mas o artista estava internado desde o fim de 2017, chegando a ficar em coma e no CTI. Big Charles deixa, além das saudades, um filho, também músico, Pedro Henrique Guedes (Peagah) e um neto. Depois de uma vida e tanto, o Caboclin deixou as coisas terrenas e foi ficar mais perto da lua.