Artistas juiz-foranos lembram importĂąncia e influĂȘncia da obra de Tim Maia
O pai da soul music brasileira morreu hĂĄ exatos 20 anos
Quem procurar por Tim Maia no Spotify vai encontrar o seguinte trecho na apresentação do cantor e compositor carioca no serviço de streaming: “O pai da soul music brasileira, Tim Maia nunca escondeu sua verdadeira natureza dos fĂŁs, empregadores ou da lei”. Pois foi dessa forma que SebastiĂŁo Rodrigues Maia viveu por intensos 55 anos, como figura iconoclasta, polĂȘmica, irĂŽnica, desbocada, mas, principalmente, com um senso de humor e um talento que dificilmente se encontra comparação na mĂșsica brasileira. Plural em todas as direçÔes de sua bĂșssola musical, ele enveredou pela soul music, o funk, a bossa nova, pop, rock, MPB, jazz, baiĂŁo, disco music e baladas romĂąnticas.
O legado? CançÔes como “RĂ©u confesso”, “Do Leme ao Pontal”, “Me dĂȘ motivos”, “Descobridor dos sete mares”, “Gostava tanto de vocĂȘ”, “Um dia de domingo”, “Azul da cor do mar”, “Sossego”, “Imunização Racional (Que beleza)”, “Leva”, “Primavera (Vai chuva)”, “VocĂȘ”, “A festa de santo Reis”, “NĂŁo quero dinheiro, sĂł quero amar”; a fama de faltar aos prĂłprios shows (que ele ironizava dizendo ser “o cantor que mais comparece a shows no Brasil”); a briga com as OrganizaçÔes Globo; a juventude na Tijuca, onde formou um grupo de rock, os Sputniks, com Erasmo e Roberto Carlos; o conturbado perĂodo em que adotou a Cultura Racional; o consumo notĂłrio de drogas; a briga com as gravadoras, o que fez com que se tornasse um dos primeiros artistas independentes do Brasil e criasse o prĂłprio selo e editora; a denĂșncia contra o “jabĂĄ” (pagar para tocar) nas rĂĄdios; e frases espirituosas como “NĂŁo fumo, nĂŁo bebo e nĂŁo cheiro. Meu Ășnico defeito Ă© que minto um pouco”.
A trajetĂłria de Tim Maia, sob muitos aspectos, terminou exatamente hĂĄ 20 anos, no dia 15 de março de 1998. Ele morreu de infecção generalizada em um hospital em NiterĂłi (RJ), onde ficou internado por uma semana depois de sofrer edema pulmonar e parada cardiorrespiratĂłria quando começava um show no Teatro Municipal da cidade. Mas Tim Maia continua vivo no imaginĂĄrio popular e tambĂ©m nas mĂșsicas que legou para a mĂșsica brasileira, seja nas rĂĄdios, nos serviços de streaming ou em tributos como os da banda ZĂ© do Black, formada por mĂșsicos de Juiz de Fora para homenagear o “sĂndico” com o “Baile do Tim”; nos eventuais shows em que a banda Maglore interpreta mĂșsicas de Tim, a ponto de gravar uma edição do programa “VersĂ”es” para o Canal Bis; nas Pick Ups do DJ Pedro Paiva, do projeto Vinil Ă© Arte; e no coração, mente e ouvidos de Marcelo Castro, da banda Silva Soul.
Obra marcante, do vinil ao cassete
NĂŁo importa como, mas a mĂșsica de Tim Maia faz parte da memĂłria musical de vĂĄrias geraçÔes, que entraram em contato com a obra do artista pelas ondas do rĂĄdio, nos sulcos do vinil e atĂ© mesmo no desenrolo das fitas cassete. “Engraçado, tentando lembrar de como as cançÔes do Tim entraram na minha vida me perco nos caminhos da memĂłria”, diz Pedro Paiva. “NĂŁo sei bem se poderia ser ‘These are the songs’ na voz de Elis (Regina), ‘Azul da cor do mar’ ou qualquer outra canção de seus discos lançados pela Polydor. Realmente vĂvido Ă© um saboroso cheiro de infĂąncia embalada pelas melodias geniais do mestre SebastiĂŁo.”
No caso de Carla Detoni, baterista da ZĂ© do Black, o primeiro contato com o trabalho de Tim foi por volta dos 7 ou 8 anos, com uma coletĂąnea em fita cassete de seus pais que, por um feliz golpe do destino, ela redescobriu junto com outros LPs em sua casa. “Sempre ouvia junto com eles, gostava, chamava a minha atenção. E eu nem sabia quem era o Tim Maia, nĂŁo conhecia o cantor, mas eu lembro da mĂșsica tocando na minha casa, ‘RĂ©u confesso’ e ‘NĂŁo quero dinheiro, sĂł quero amar’ sĂŁo as mais presentes na minha memĂłria.”
JĂĄ Marcelo Castro, baixista da Silva Soul, diz nĂŁo lembrar a primeira vez que ouviu as cançÔes do “sĂndico”, mas com certeza era presença marcante em sua infĂąncia. “Talvez tenha sido na minha casa mesmo, com as mĂșsicas que meu pai ouvia, ou pelo rĂĄdio e TV em que ele sempre estava presente, ou pelo seu passado ou pelo que estava lançando no momento. O fato Ă© que quando descobri a soul music americana, automaticamente fui parar no som do Tim Maia. Eu cheguei ao estilo pelas linhas de baixo bem trabalhadas e com uma sonoridade que se destacava. Era legal ver o meu instrumento em papel de destaque e nĂŁo sĂł dublando a guitarra como eu via no rock”, comenta.
Essencial e influente, 20 anos depois
Independente do “marco zero” na vida de cada um, todos destacam a importĂąncia da obra do pai do soul music brasileira para a nossa cultura musical. “Quando me deparei com o soul do Tim, nĂŁo era tradução de um estilo americano. Ele recontou a histĂłria, trouxe para o universo brasileiro e praticamente criou um novo estilo. O que Tim Maia fez com a soul music pouca gente fez no Brasil. Talvez Raul Seixas tambĂ©m tenha alcançado ao misturar Elvis com Gonzaga, mas nada tĂŁo autĂȘntico como o Tim”, afirma Marcelo Castro, para quem cada ĂĄlbum que conhecia resultava em “amor a cada ouvida”, em especial os trabalhos dos anos 70. “Claro, ainda teve o Racional nesse caminho, prova de que o potencial musical dele Ă© gigantesco. A fase 80 Ă© boa tambĂ©m, mas ficou muito marcada por aqueles timbres de bateria tĂpicos da dĂ©cada, o que deixa o som datado. Mesmo assim nessa fase tem clĂĄssicos como os ĂĄlbuns ‘Reencontro’ e ‘Nuvens’, recheados de pĂ©rolas.”
“VocĂȘ nĂŁo vĂȘ uma tendĂȘncia no trabalho do Tim. Ă um cantor brasileiro com uma voz maravilhosa, um tenor com um timbre ‘escuro’, com uma rouquidĂŁo na voz que acho fantĂĄstica. Ă um excelente compositor tambĂ©m, que traz a temĂĄtica brasileira, do soul americano, fundindo o funk dos Estados Unidos, o blues com o samba, numa Ă©poca que as coisas eram quadradinhas com a Jovem Guarda. Por isso mesmo fez esse sucesso estrondoso, e depois a parte romĂąntica, mais lĂrica”, analisa Carla Detoni. “Depois que comecei a trabalhar com mĂșsica, percebi que existem vĂĄrios ‘Tim Maias’, porĂ©m nĂŁo tem uma fase que eu nĂŁo goste.”
Para o DJ Pedro Paiva, impressiona o massivo apelo popular das composiçÔes e a força da personalidade do compositor mesmo que tenham se passado duas dĂ©cadas da morte de Tim Maia. “O musicista de talento absurdo cantou as dores do mundo como poucos e sempre manteve o coração atento Ă s chagas da alma, sem nunca baixar a guarda em relação aos desejos do corpo de dançar o groove malemolente de hits eternos como ‘Sossego’ ou ‘Do Leme ao Pontal'”, exemplifica. “A polĂȘmica de suas entrevistas, estilo de vida e posturas anti-heroicas alimentavam o mito mas nĂŁo mostravam sua verdadeira essĂȘncia musical. Apenas anos depois, jĂĄ na profissĂŁo de DJ, vim a conhecer cada ĂĄlbum, compacto e single para enfim, compreender Tim Maia como um parĂąmetro essencial da mĂșsica brasileira.”
Tim de todas as Ă©pocas
Prova da importĂąncia e da longevidade do artista para a mĂșsica nacional Ă© a ZĂ© do Black, que rodou mais de 25 cidades da regiĂŁo entre 2015 e 2017 com o “Baile do Tim”, tributo que cobria todas as fases da carreira do artista carioca. O repertĂłrio do “Baile do Tim” começa no final dos anos 60, passa pela “fase Racional”, mais mĂstica, e as baladas romĂąnticas dos anos 80. “Fizemos laboratĂłrio, pesquisa, conversamos com o filho dele no Rio de Janeiro, conseguimos bastante coisa bacana. NĂŁo deu para reproduzir tudo, porque ele tinha uma produção extensa que chegava a dois discos por ano. E nĂŁo era um cover do Tim Maia, que seria algo muito caricato. Ele era muito verdadeiro, Ășnico, e qualquer um que tente imitĂĄ-lo fica aquela coisa caricata, engraçadinha, acaba soando falso. NĂŁo era nosso objetivo.”
Tim Maia, 75 anos
Se estivesse vivo…
Se estivesse vivo, Tim Maia teria completado 75 anos em 28 de setembro de 2017. Como artista que nĂŁo tinha medo de experimentar novos horizontes musicais, nosso SebastiĂŁo poderia ter surfado novas ondas sonoras nestas Ășltimas duas dĂ©cadas, em que a mĂșsica eletrĂŽnica virou a queridinha de muitos, assim como o funk carioca e outros ritmos. Poderia ter feito um “AcĂșstico” para a MTV, tributos mil, duetos, parcerias com os novos talentos made in Brazil, revisitado a prĂłpria obra, virado Youtuber ou figurinha carimbada em talk shows, ter ganhado o prĂłprio programa numa emissora de TV a cabo.
Ou continuar a falar mal de tudo e todos, pregar contra o jabĂĄ ou rir da decadĂȘncia das rĂĄdios e indĂșstria fonogrĂĄfica frente Ă internet, abraçado o “quer pagar quanto?” propagado pelo Radiohead em “In Rainbows”. Ou ter ficado apenas com seus shows com a Banda VitĂłria RĂ©gia, reclamando do retorno. Ou ter feito nada, afinal Tim Maia era um mistĂ©rio a ser decifrado (novamente) a cada dia. Por conta disso, pedimos para Marcelo Castro, Pedro Paiva e Carla Detoni imaginarem o que o bom e velho Tim teria feito nos Ășltimos 20 anos – ou estaria aprontando hoje.
Pedro Paiva, DJ
Praticamente impossĂvel prever o que o mestre estaria fazendo hoje se estivesse vivo. Poderia estar vivendo em um castelo medieval na Europa, em uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, ou mesmo em outro planeta de nosso Sistema Solar. Mas com certeza estaria compondo e lançando suas mĂșsicas de forma independente como fez por muitos anos, e lutando para distribuir sua arte de forma justa. Acredito que uma mesma luta de outrora seria transposta para o mundo virtual dos dias de hoje, e ele ainda estaria batalhando para ser visto, ouvido e comprado. E ainda: poderia apostar que o hoje em dia o sĂndico estaria fazendo a diferença na mĂșsica popular brasileira.
Marcelo Castro, baixista
Se ele tivesse vivo hoje…. AĂ nĂŁo dĂĄ pra ter certeza (risos)… Primeiramente o “Tim Maia Racional” nĂŁo teria feito tanto sucesso, porque ele nĂŁo ia gostar nem um pouco. Em compensação, acho que ele estaria com mĂșsicas bem atuais, com sonoridade bem trabalhada, porque ele era muito ligado nisso. Ele sempre gostava do mais moderno para o seu som. Mas ainda assim acho que os discos seriam os mesmos com metade de “mela cueca” e metade de “esquenta suvaco”, que para ele era a fĂłrmula perfeita. Acredito tambĂ©m que ele se destacaria fora do Brasil, porque hoje a conexĂŁo com o exterior Ă© muito maior que naquela Ă©poca, vide uma coletĂąnea dele produzida por ingleses que bombou de vendas na Europa na Ășltima dĂ©cada.
Carla Detoni, baterista
Imaginar o que ele faria hoje Ă© bem complicado. Se ele conseguisse recuperar sua saĂșde e continuasse cantando, acredito que estaria fazendo shows, porque morreu praticamente em cima do palco, onde mais gostava de estar apesar de toda a fama de que nĂŁo comparecia a shows, uma antipropaganda que virou propaganda tambĂ©m. Nos anos 70, ele aderiu Ă Imunização Racional, que era uma espĂ©cie de seita, entĂŁo acredito que talvez pudesse estar em outra onda dessas, num outro tipo de orientação racional ou irracional (risos), alguma religiĂŁo, algo nessa linha. Era um cara que gostava de experimentar vĂĄrias coisas que a vida oferece. Ou como apresentador num canal no YouTube, Ă© a cara dele ter um canal com mĂșsicas, vĂdeos, amigos, depoimentos sobre a carreira e explorando a temĂĄtica afrodescendente, pois tinha essa coisa forte da black music. Poderia fazer parcerias com os cantores atuais, talvez Tim Maia e Seu Jorge, com a galera do movimento hip-hop.