O resgate da memória: da gripe espanhola ao coronavírus
Pedro Nava, em sua obra Chão de Ferro/ memórias 3, publicada em 1976, descreve o horror causado pela Gripe Espanhola, em 1918
Pedro Nava, que também era médico, em sua obra Chão de Ferro/ memórias 3, publicada em 1976, descreve o horror causado pela Gripe Espanhola, pandemia que chegou ao Brasil em 1918 (causando a mesma comoção que vivemos, hoje, um século depois, com a Covid-19). A origem da doença é desconhecida, mas o que se sabe é que os primeiros registros foram feitos nos Estados Unidos, durante a primeira guerra mundial (1914 – 1918). À época, muitas das grandes potências mundiais estavam envolvidas no embate e suas imprensas impediam a veiculação de notícias sobre a gripe, pois queriam evitar que o restante do mundo soubesse que seus exércitos haviam sido afetados. Essa situação foi diferente com a Espanha. Como ela se manteve neutra durante toda a guerra, não precisou fazer segredo sobre a nova doença, ao contrário de muitos países que buscaram suavizar o impacto da moléstia reinante. Por isso, assim que a doença chegava a um novo país, era logo chamada de “a espanhola”. O novo subtipo do vírus Influenza não demorou a infectar toda a Europa, mas foi o governo da Espanha que notou tratar-se de um mal grave. Supõe-se que a doença tenha chegado ao Brasil por meio do Demerara, um navio que saiu da Inglaterra, passou por Lisboa e atracou em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. O navio chegou aqui em setembro de 1918. Pedro Nava assim nos relata:
P.N.: “O demônio já estava em nosso meio, ainda não percebido pelo povo como a desgraça coletiva que ia ser, mas já tendo chamado a atenção das autoridades sanitárias […]. Estava reconhecido o estado epidêmico. A 3 de outubro o Diretor de Saúde Pública alerta os portos e determina as medidas de profilaxia indiscriminada. Nesse dia chega à Guanabara mais um barco – o Royal Transport. Antes, a 14 de setembro, o Demerara tinha entrado com doentes a bordo. Provavelmente outros tinham antecipado esses transportes, sem chamar a atenção, mas já contaminados e contaminando” (p. 198-199).
As notícias sobre a doença só começaram a ganhar destaque na imprensa quando os componentes da Missão Médica Brasileira que se encontravam a caminho de Dakar, a bordo do navio La Plata foram, um a um, adoecendo do misterioso mal. Morreram muitos deles, sem que os médicos que compunham a missão pudessem fazer alguma coisa pelos oficiais e soldados que caíam vitimados pela desconhecida epidemia. As primeiras notícias das mortes entre os componentes da Missão Médica chegaram ao Brasil por mensagem telegráfica enviada pelo chefe da missão, Nabuco de Gouveia, no dia 22 de setembro de 1918, mas a notícia não foi suficiente para alertar as autoridades para o perigo que se anunciava:
P.N: “Nós tínhamos fora do Brasil, dois grupos dos Aliados: a Esquadra de Patrulha, comandada pelo Almirante Pedro Max de Frontin e a Missão Médica, chefiada por Nabuco de Gouveia. Ambos foram atingidos pela pestilência que grassava na Europa, Ásia e África quando entraram em portos do primeiro e terceiro continentes. No princípio pouco se soube do que se passava nos nossos vasos de guerra, o segredo sendo guardado com mais cuidado que no La Plata, saído daqui a 18 de agosto, conduzindo nossos médicos e que deve ter se infectado a 29 do mesmo mês, quando tocou em Freetown, Serra Leoa, onde grassava a moléstia reinante. Mais um pouco e a viagem começou a ser o inferno […]. A 9 de setembro os primeiros corpos são jogados ao mar. A 22 chegam telegramas contando as desgraças da Missão Médica, o que é confirmado, oficialmente, a 27, quando Nabuco dá notícia de Influenza entre seus comandados” (p.198).
Logo a doença se espalhou, pois não havia medicamentos que a combatessem em virtude de uma medicina ainda incipiente entre nós. A difusão foi rápida e afetou, sobretudo, o Rio de Janeiro e São Paulo. Apesar de essas terem sido as duas cidades mais afetadas, todo o país foi atingido. Como não havia medicamentos para combater a enfermidade, os médicos passavam alguns fármacos para amenizar os sintomas e esperavam o corpo do paciente reagir. Como ocorre agora, as recomendações das autoridades eram no sentido de que as pessoas evitassem aglomerações, lavassem periodicamente suas mãos e evitassem contato com outras pessoas, embora tais recomendações, como ocorreu em alguns lugares na atual epidemia, tenham sido tomadas tardiamente:
P.N.: “A doença irrompeu aqui em setembro, pois em fins desse mês e princípios de outubro, as providências das autoridades abriram os olhos do povo e isto explicou certas anomalias que vinham sendo observadas na vida urbana: tráfego rareado, cidade vazia e meio morta, casas de diversão pouco cheias, conduções sempre fáceis, as regatas, as partidas de water-polo e futebol quase sem assistentes, as corridas do Derby e do Jockey com aficcionados reduzidos ao terço […]. Comecei a sentir o troço numa segunda-feira de meados de outubro em que, voltando ao colégio, encontrei apenas onze alunos do nosso terceiro ano de quarenta e seis. Trinta e cinco colegas tinham caído gripados de sábado para o primeiro dia da semana subsequente. Chegamos ao colégio às 9 horas. Ao meio-dia, dos sãos entrados, já uns dez estavam tiritando na Enfermaria” (p. 199/200).
A gripe espanhola impactou severamente a rotina das pessoas no Brasil e causou milhares de mortes. Alguns dados registram que a cidade de São Paulo possa ter tido cerca de 350 mil casos, o que representava mais da metade da população da capital paulista, à época, e um total de 5.331 mortos. Já o Rio de Janeiro, que era então a capital do Brasil, registrou cerca de 12.700 mortes, o que representou 1/3 do total de mortes no país:
P.N.: “Synochus catarrhalis era o nome de uma doença epidêmica, clinicamente individualizada desde tempos remotos e que periodicamente, cada vez com maior extensão, assola a humanidade. Essa extensão está relacionada à velocidade sempre crescente das comunicações. Seu contágio já andou a pé, a passo de cavalo, a velocidade de trem de ferro, de navio e usa, nos dias de hoje, aviões supersônicos _ espalhando-se pelo mundo em dois, três, quatro dias. Quando passou pela Itália (na epidemia de 1802 que tão duramente castigou Veneza e Milão), recebeu o nome que fez fortuna: influenza. O termo pegou, passou para linguagem corriqueira e lembro de tê-lo ouvido empregado por minha avó materna, em Juiz de Fora […]. O nome gripe vem do meio do século passado e foi primeiro empregado por Sauvages, de Montpellier, tendo em conta o aspecto tenso, contraído, encrespado, amarrotado _ grippé _ que ele julgou ver na cara de seus doentes” (p. 199).
A grande quantidade de casos de gripe espanhola, no Brasil, fez com que o nosso sistema de saúde (que não era público) fosse incapaz de absorver a demanda exigida pelo número de infectados. Faltavam leitos e médicos, tendo sido necessário improvisar camas e hospitais para o atendimento das pessoas. Todo tipo de aglomeração pública foi evitado pelas autoridades, que foram aconselhadas pelos principais especialistas que o Brasil possuía, na época:
P.N.: “No dia 11 de outubro já era problema tão grave que Carlos Sedl [o Diretor de Saúde Pública do Rio de Janeiro] pede ao seu ministro autorização para contratar pessoal extraordinário que permitisse à Saúde Pública funcionar a contento na emergência que se desenhava. Tornou-se calamidade de proporções desconhecidas nos nossos anais epidemiológicos nos dias terríveis da segunda quinzena de outubro e sua morbidade e mortalidade só baixaram na ainda trágica primeira semana de novembro […]. Conforme as condições do terreno, segundo a resistência dos indivíduos ou o point d’appel de sua zona mais fraca _ a influenza apresentava-se assim benigna, ou assumia as fisionomias que foram chamadas de pneumônica, broncopneumônica, gastroentérica, coleriforme, nevrálgica, polineurítica, meningítica, meningo-encefálica, renal, astênica, sincopal e fulminante. Era apavorante a rapidez com que ela ia da invasão ao apogeu, em poucas horas, levando a vítima às sufocações, às diarreias, às dores lancinantes, ao letargo, ao coma, à uremia, à síncope e à morte em algumas horas ou poucos dias. Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante” (p. 200-201).
A quantidade de mortos em pouco tempo também extrapolou a capacidade de enterros que os cemitérios locais poderiam realizar. Não havia caixões suficientes e os coveiros trabalhavam, freneticamente, para dar conta de tantos defuntos:
PN: “[…] o terrível já não era o número de causalidades _ mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva. Como na calamidade de Paris, em 1889, quando a gripe atirara ao leito dois terços da população, no Rio a doença surpassou-se e derrubou, numa grande gala hedionda, quatro quintos dos cariocas no chão, na cama ou na enxerga dos hospitais. Competiu aos vinte por cento restantes, de convalescentes ou sãos, aguentar a cidade que vacilava à beira do colapso […]. Além da fome, da falta de remédio, de médicos, de tudo, as folhas noticiavam o número nunca visto dos doentes e cifras pavorosas do obituário. As funerárias não davam vazão _ havia falta de caixões. Até de madeira para fabricá-los, ao ponto dum carpinteiro do subúrbio atender encomendas fazendo os envelopes com tábuas do teto e do soalho de sua casa” (p. 201-202)
O número de mortos aumentava a cada momento e já não havia mais quem os transportasse ao cemitério, pois a maioria da população estava doente. Assim como aconteceu agora, em pleno século XXI, por conta do Covid-19, cadáveres jaziam nas casas e nas ruas, esperando ser recolhidos:
PN: “Quando ataúde havia, não tinha quem os transportasse e eles iam para o cemitério a mão, de burro-sem-rabo, arrastados ou atravessados nos táxis. No fim os corpos iam em caminhões, misturados uns aos outros […]. Havia troca de cadáveres podres por mais frescos, cada qual querendo se ver livre do ente querido que começava a inchar, a empestar. No agudo da epidemia, num dia em que não havia mais jeito de transportar tanto morto, o Chefe de Polícia já dava o desespero quando a solução veio do Jamanta, o célebre folião do Carnaval carioca. […] Ele conhecia, admiravelmente, o seu Rio de Janeiro e por um desses caprichos de boêmio, aprendera em passeatas noturnas, a dirigir bondes. Pediu e obteve dos seus superiores um bagageiro e vasculhou com eles a cidade de norte a sul […]. Bonde e reboques cheios de caixões empilhados e de amortalhados em lençóis, o motorneiro solitário batia para o [cemitério do] Caju. Descarregava. O dia já ia alto, mas ele voltava e varejava Laranjeiras, Flamengo, Botafogo, Jardim Botânico, Ipanema, Copacabana _ pegando mais defuntos. Lotava. Já noite, passava a sinistra composição como o Trem Fantasma ou o navio de Drácula _ entupida da carga para o [cemitério] São João Batista. Fez isso uns dois ou três dias que marcaram para sempre sua lembrança. Quem me referiu esse heroísmo desconhecido do Jamanta foi seu irmão Aluísio de Azevedo Sobrinho” (p. 204).
O número de mortos era tão assustador que a cremação improvisada foi instituída como saída para a situação alarmante, além da acirrada e trágica disputa por covas, que faltavam para todos:
PN: “[…] um dia, o acúmulo de insepultos foi tal que queimaram-nos aos montões nos fundos do cemitério. Até as covas eram tomadas de assalto, como as que meu cunhado, o então Comandante Paulo Penido, mandara cavar, no Caju, por fuzileiros para os marinheiros mortos de uma belonave americana que chegara atochada deles. Parece que era o couraçado Pittsburgh. Pois quando os defuntos chegaram, era tarde. Tinha sido tudo invadido. Meu cunhado mandou abrir outras, largas e bem fundas, e nelas enterrou os macabeus que trouxera aos dois, três e quatro em cada buraco” (p. 205).
Os boatos (como ocorre agora, cem anos depois) corriam soltos e apavoravam, cada vez mais, uma população já vencida pelo medo:
PN: “Verdadeiros ou falsos, os boatos eram como se fossem realidade pelo impacto que causavam. Descrevia-se a fome. Os ataques às padarias, armazéns, bodegas por aglomerados de esfaimados e convalescentes esquálidos, roubando e tossindo. Dizia-se de famílias inteiras desamparadas _ uns com febre outros com fome; de criança varada, sugando o seio da mãe morta e podre […]. Seria verdade? Era. Posso testemunhar contando o que passei, o que passamos, na casa em que estava _ pura e simplesmente fome. Conheci essa companheira pardacenta” (p. 202).
Pedro Nava tinha 15 anos neste 1918 e era estudante interno do Colégio Pedro II. Estava hospedado na casa do tio Ennes de Souza quando também foi acometido pela gripe, engrossando a fila de doentes da família:
PN: “[…] quando entrei no cômodo que nos servia de dormitório, já lá encontrei, espichado, o Paulo. A Eponina, o Ernesto, a Sinhá-Cota e o Gabriel estavam convalescendo e agora caíamos mais dois no mesmo dia. E ambos com a forma intestinal. Ardíamos em febre […]. O Dr. Guimarães receitou quinino, magnésia fluida e dieta absoluta. Só água e chá o dia inteiro e à noite _ só à noite _ um copo de leite bem açucarado e engrossado com araruta. […] Assim tratados e mimados pela Pupu, começávamos a melhorar e já prestando atenção ao ambiente, eu e o Paulo notamos o sumiço de todos e nossa enfermeira rareando nas suas aparições. E sentíamos um sapateado contínuo no assoalho, em cima. Era a Nair que caíra e estava piorando sempre” (p. 207).
A Influenza, infelizmente, não foi a primeira pandemia a grassar pelo mundo, tampouco será a última:
PN: “[…] a literatura médica está cheia da descrição de surtos epidêmicos de que alguns assumiram aspecto pandêmico, assolando todas as grandes aglomerações humanas, como o de 1733, que marca a primeira passagem oceânica de mesma epidemia propagada da Europa à América; os de 1837, 1847, 1889 e finalmente o de 1918 que varreu o mundo, causando maior número de mortes que a Primeira Grande Guerra. […] Não, seus pais não foram a Conflagração Europeia e o Imperador Gulherme II. Ela nasceu da influência, desta coisa imprecisa, desprezada pelos modernos mas entretanto existente _ que são as coincidências telúricas, estacionais e atmosféricas responsáveis pela chamada constituição médica de determinadas doenças no tempo _ a constitutio dos clássicos […] que aparece em vários trechos de Hipócrates exprimindo as vicissitudes dos ares, dos lugares, das estações e sua responsabilidade na gênese das moléstias. Pois o sínoco de catarro, influenza, gripe ou como queiram chamá-la _ a espanhola instalou-se entre nós em setembro e cresceu no fim desse mês e nos primeiros do seguinte” (p. 200).
*Professora doutora, docente sênior do Programa de Mestrado e Doutorado em Estudos da Linguagem – PPGEL, da Universidade Estadual de Londrina. Especialista nos estudos sobre Pedro Nava, pois toda a sua formação após a graduação em Letras Anglo-Portuguesas teve como corpus os sete volumes (o último incompleto) da obra do autor. Fez Especialização, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutoramento enfocando os escritos daquele que é considerado o maior memorialista brasileiro. Publicou dois livros sobre a obra de Nava, sendo que um deles foi indicado ao Prêmio Jabuti na categoria Teoria/Crítica Literária.