O paĆs de hoje segundo a literatura de Luiz Ruffato
Retratando o retorno de um homem a Cataguases atual, novo livro do escritor Luiz Ruffato, com lanƧamento neste sĆ”bado em Juiz de Fora, pensa o Brasil contemporĆ¢neo e suas decadĆŖncias
No mesmo ano em que a barragem de Bento Rodrigues se rompeu, criando um rastro de lama de Minas Gerais atĆ© o Oceano AtlĆ¢ntico, Dilma Roussef tomou posse de seu segundo, e inacabado, mandato Ć frente da presidĆŖncia. Naquele mesmo 2015, quando a centenĆ”ria Tomie Ohtake se despediu, e tambĆ©m o jovem cantor Cristiano AraĆŗjo, JosĆ© Aldo perdeu o cinturĆ£o peso pena do UFC para o irlandĆŖs Conor McGregor, numa luta de menos de 15 segundos. O ano ainda comeƧava quando OsĆ©ias tomou um Ć“nibus e desceu na rodoviĆ”ria de Cataguases. A cidade era outra, fĆ©tida, violenta e fragmentada. O Brasil era outro tambĆ©m, mostra o escritor Luiz Ruffato em seu mais novo livro, “O verĆ£o tardio” (Companhia das Letras, 231 pĆ”ginas), que tem lanƧamento em Juiz de Fora neste sĆ”bado, 11, Ć s 11h, no Bar da FĆ”brica. “O OsĆ©ias Ć© um pouco o instantĆ¢neo de um certo Brasil que vivemos hoje”, reconhece o escritor.
“O OsĆ©ias Ć© um pouco o instantĆ¢neo de um certo Brasil que vivemos hoje”
Desoladores e decadentes, os retratos de OsĆ©ias e de Cataguases refletem as ruas de hoje. “O pessoal de Cataguases fala que essa Cataguases que eu falo nĆ£o existe”, ri Ruffato. “Ć uma loucura isso. Evidentemente, a realidade, o concreto, o que estĆ” lĆ” fora Ć© uma apreensĆ£o subjetiva. A Cataguases que eu apreendo Ć© assim. O tempo presente da narrativa Ć© a Cataguases contemporĆ¢nea. Embora eu ache que descrevo realisticamente todos os lugares que estĆ£o ali – para mim eles sĆ£o reais e concretos, assim como Rodeiro (municĆpio prĆ³ximo). Ć uma visada subjetiva. Pode ser que alguĆ©m veja e diga que nĆ£o Ć© assim. Para mim, a cidade serve como microcosmo do Brasil. Posso tomar a cidade e pensar o paĆs.”
A decadĆŖncia da Zona da Mata, segundo o escritor, nĆ£o Ć© de hoje. Ć histĆ³rica. E tambĆ©m estĆ” representada em seus livros. Se na pentalogia “Inferno provisĆ³rio” o escritor se detĆ©m na reconstruĆ§Ć£o da segunda metade do sĆ©culo XX, em “De mim jĆ” nem se lembra” volta-se para um perĆodo especĆfico da ditadura militar e, em “Estive em Lisboa e lembrei de vocĆŖ” focaliza a crise econĆ“mica que levou os brasileiros para fora do paĆs. No novo livro, o aqui Ć© o presente. “O ano de 2015 Ć© bastante importante para pensar o Brasil contemporĆ¢neo”, pontua o escritor. ” A histĆ³ria econĆ“mica de cataguases coincide perfeitamente com a histĆ³ria econĆ“mica do Brasil. A necessidade de voltar Ć cidade foi, na verdade, uma necessidade de voltar a nossa histĆ³ria ‘contemporanĆssima'”, acrescenta.
Retrato de ruĆnas
A ideia do retorno Ć© o que faz o livro, que segue o fluxo da consciĆŖncia de OsĆ©ias, todo narrado no presente tĆ£o instigante, jĆ” que o personagem confronta-se com seu passado na urgĆŖncia de enxergar seu agora. NĆ£o Ć toa, OsĆ©ias a todo tempo limpa as lentes de seus Ć³culos com a fronha da camisa. Ć preciso ver. Ainda que o que se mostre Ć frente seja ruĆna. “Essa regiĆ£o toda nĆ£o conseguiu se reconfigurar economicamente desde a dĆ©cada de 1970. Ela vem sangrando desde entĆ£o. Isso Ć© fato, e nĆ£o precisa ser um observador muito perspicaz para ver como as cidades da Zona da Mata tĆŖm violĆŖncia, sĆ£o sujas, mal organizadas e do ponto de vista urbano sĆ£o um horror, praticamente inexistem. AtĆ© mesmo Juiz de Fora, que Ć© a melhor dessas cidades todas, passa por esse processo de decadĆŖncia”, comenta Ruffato.
Tomando a parte pelo todo, o autor estĆ” interessado em apontar para um desmoronamento que Ć© processual e Ć© constante. “E sempre no meu sempre a mesma ausĆŖncia”, escreve Carlos Drummond de Andrade no que serve de epĆgrafe da obra de Ruffato. “Ć um paĆs que, infelizmente, mesmo em seu momento auge, quando parecia que estava tomando algum tipo de rumo, ainda nĆ£o estava bem. Depois descobrimos que era uma espĆ©cie de fantasia. SĆ³ para falar no perĆodo da minha existĆŖncia, tivemos uma crise econĆ“mica terrĆvel na dĆ©cada de 1970, depois na dĆ©cada de 1980 inteira, depois passamos por um perĆodo relativamente tranquilo a partir daĆ. No comeƧo dos anos 2000, tivemos outra crise horrĆvel e hoje, essa segunda dĆ©cada do sĆ©culo XXI, segundo especialistas, Ć© a pior dĆ©cada da histĆ³ria brasileira. Desde que comeƧou a ser medido o crescimento econĆ“mico, em 1901, essa Ć© a pior dĆ©cada de toda a histĆ³ria brasileira”, discute o escritor. “NĆ£o Ć© uma fantasia minha. Os dados econĆ“micos mostram isso.”
“Essa regiĆ£o toda nĆ£o conseguiu se reconfigurar economicamente desde a dĆ©cada de 1970. Ela vem sangrando desde entĆ£o. Isso Ć© fato, e nĆ£o precisa ser um observador muito perspicaz para ver como as cidades da Zona da Mata tĆŖm violĆŖncia, sĆ£o sujas, mal organizadas e do ponto de vista urbano sĆ£o um horror, praticamente inexistem. AtĆ© mesmo Juiz de Fora, que Ć© a melhor dessas cidades todas, passa por esse processo de decadĆŖncia.”
“O verĆ£o tardio”, portanto, Ć© fruto do momento, adverte o autor. “Em nenhum livro meu quero fazer discurso polĆtico. Em nenhum livro meu, hĆ” um viĆ©s ideolĆ³gico nesse sentido mesquinho que estĆ£o usando o termo hoje. NĆ£o sou sociĆ³logo, nĆ£o sou polĆtico e nĆ£o sou economista. E para mim, a grande vantagem do discurso literĆ”rio Ć© que ele abrange todos os outros discursos. Em suma, ele teria uma abrangĆŖncia de visĆ£o maior do que a dos discursos isolados. O OsĆ©ias Ć© um sujeito no sĆ©culo XXI, de classe mĆ©dia baixa e estĆ” sofrendo o processo que a classe mĆ©dia baixa sofreu no Brasil. Teve um momento em que essa classe acreditou que iria virar alguma coisa e nĆ£o virou nada. Ele Ć© um sujeito aposentado, e a aposentadoria no Brasil nĆ£o serve para absolutamente nada, ela joga na indigĆŖncia. Ele Ć© um sujeito, tambĆ©m, que, por conta da degradaĆ§Ć£o do paĆs, tem o filho envolvido com as drogas, uma coisa muito comum hoje.”
‘Escrevo para mim’
Numa narraĆ§Ć£o enĆ©rgica de movimentos precisos, o leitor acompanha OsĆ©ias levantando, escovando os dentes, comendo, andando pelas ruas de Cataguases, conversando com antigos amigos e seus familiares e, sonolento, se perdendo entre ideias e lembranƧas atĆ© pegar no sono. “Essas descriƧƵes minuciosas sĆ£o filhas de um lado do realismo, do realismo do sĆ©culo XIX, e muito do ‘nouveau roman’ francĆŖs. Sempre fui um grande leitor do ‘nouveau roman’, e vem daĆ essa ideia de, ao mesmo tempo, dar alma a todos os objetos e coisificar tudo”, identifica Luiz Ruffato, negando o carĆ”ter cinematogrĆ”fico da obra. ImagĆ©tico, o livro, nomeia ele. E fruto de um interesse genuĆno.
“Nunca escrevo livro para alguĆ©m. Escrevo para mim.”
“Nunca escrevo livro para alguĆ©m. Escrevo para mim. Vou aqui na minha biblioteca, que Ć© bastante grande, e, Ć s vezes, nĆ£o encontro um livro que quero ler sobre determinado assunto e, entĆ£o, escrevo ele para eu ler. NĆ£o foi diferente com esse livro”, conta. “Parti de uma imagem de ‘Eles eram muitos cavalos’, em que um dos personagens, na Ćŗnica cena que se passa em Cataguases, ouve o barulho de um tiro e, menino, sobe na janela para ver o que era e se depara com uma mulher sangrando no ouvido. Ela tinha se matado”, recorda-se ele, que entregou a obra no final de 2018, apĆ³s dois anos de escrita. “Como essa imagem jĆ” estava no livro de 2001, provavelmente, sem que eu soubesse, a histĆ³ria motivadora jĆ” estava sendo gestada em minha cabeƧa. Evidentemente, quando faƧo isso estou falando sobre o que estĆ” acontecendo hoje e sobre o que nĆ£o estĆ” acontecendo. A literatura tem essa vantagem de ser temporal e atemporal, espacial e ‘inespacial’ ao mesmo tempo”, comenta.
Non ducor duco00
“O verĆ£o tardio” ainda Ć© fruto da prĆ³pria natureza da narrativa com um desafio imposto despretensiosamente. HĆ” alguns anos, ao enviar uma mensagem natalina a Luiz Schwarcz, presidente do Grupo Companhia das Letras, Ruffato obteve como resposta votos de um feliz Natal e a piada de que a editora esperava, tambĆ©m, um livro dele com comeƧo, meio e fim. “Vi que era uma piada, mas fiquei pensando: isso seria um desafio interessante. Todos os meus livros tem comeƧo, meio e fim, mas nĆ£o nessa ordem. Eu tinha essa imagem da menina que se matou e tinha esse ‘desafio’. O que posso fazer com isso ou a partir disso? Evidentemente que ‘O verĆ£o tardio’ nĆ£o Ć© um livro tradicional formalmente, nĆ£o Ć© uma histĆ³ria com comeƧo, meio e fim tradicional. Ele Ć© cheio de idas e voltas, voltas e idas, mas de alguma maneira satisfaz aquela brincadeira que o Luiz fez comigo e eu aceitei.”
“Gosto muito de ir descobrindo com o personagem o que a histĆ³ria quer dizer. E me surpreendo muito.”
Considerado uma das mais potentes vozes da literatura contemporĆ¢nea brasileira, Ruffato diz seguir o lema ao contrĆ”rio inscrito no brasĆ£o da cidade de SĆ£o Paulo: “Non ducor duco” (nĆ£o sou conduzido, conduzo). “Eu nĆ£o conduzo, sou conduzido”, afirma, para logo se explicar: “Tinha aquela imagem, esse desafio, mas o que iria fazer com isso deixei que a histĆ³ria conduzisse. Gosto muito de ir descobrindo com o personagem o que a histĆ³ria quer dizer. E me surpreendo muito. Os fade-outs dos sonhos, por exemplos, surgiram naturalmente. Como a descriĆ§Ć£o ali Ć© quase num tempo real, escrevi como se ele, aos pouquinhos, fosse apagando a memĆ³ria. Era uma necessidade de continuar a descriĆ§Ć£o que estava acontecendo. A questĆ£o formal para mim, da linguagem, nasce em funĆ§Ć£o das dificuldades que encontro na prĆ³pria narrativa”, explica ele, contando de um processo que comeƧa com tĆtulo, epĆgrafe e, sĆ³ depois, ganha forma. “NĆ£o consigo comeƧar a escrever sem ter o tĆtulo, as epĆgrafes e sem saber o que vou fazer com o livro.”
‘Ć o pior momento que vivemos’
Nascido em Cataguases e radicado em SĆ£o Paulo hĆ” algumas dĆ©cadas, apĆ³s se formar em Juiz de Fora no curso de ComunicaĆ§Ć£o Social da UFJF, Luiz Ruffato nĆ£o guarda muitas semelhanƧas com seu protagonista OsĆ©ias. “NĆ£o hĆ” qualquer coisa que possa parecer comigo”, garante. “Todas as vezes que lanƧo livro, em alguns mais, em outros menos, sempre hĆ” uma tentativa de encontrar elementos autobiogrĆ”ficos no que escrevo. E, na verdade, isso nĆ£o existe, porque sempre parto do princĆpio de que minha vida pessoal Ć© absolutamente desinteressante e nĆ£o fornece elementos suficientes para criar uma narrativa atraente. Nesse livro especĆfico, por exemplo, tirando o fato de o personagem ter vindo morar em SĆ£o Paulo, como eu fiz, nĆ£o hĆ” nada que se relacione. NĆ£o tive uma irmĆ£ que se matou, nĆ£o tenho trĆŖs irmĆ£os em posiƧƵes diferentes na sociedade, nĆ£o tive uma namorada na infĆ¢ncia com aquela trajetĆ³ria.”
“Este ano de 2019, sem dĆŗvida alguma, desde 2003, quando passei a viver de literatura, Ć© o pior ano de todos. E nĆ£o sĆ³ no sentido econĆ“mico, mas tambĆ©m no sentido polĆtico. A situaĆ§Ć£o polĆtica se deteriorou tanto no Brasil que nĆ³s trabalhamos com muita inseguranƧa hoje. NĆ£o sabemos o que vai acontecer.”
Em comum, porĆ©m, hĆ” a desolaĆ§Ć£o. “Este ano de 2019, sem dĆŗvida alguma, desde 2003, quando passei a viver de literatura, Ć© o pior ano de todos. E nĆ£o sĆ³ no sentido econĆ“mico, mas tambĆ©m no sentido polĆtico. A situaĆ§Ć£o polĆtica se deteriorou tanto no Brasil que nĆ³s trabalhamos com muita inseguranƧa hoje. NĆ£o sabemos o que vai acontecer. O mercado editorial vive uma crise como nunca houve, livrarias estĆ£o fechando, editoras cortando seus investimentos, e inexistem muitos festivais literĆ”rios. Vivo um momento que nunca achei que iria existir, que Ć© o das feiras convidando autores graciosamente, sem pagar absolutamente nada. E nĆ£o Ć© possĆvel, porque esse Ć© um trabalho. Ć o pior momento que vivemos. Infelizmente, no meu prognĆ³stico nada Ć© bom”, avalia ele, cujo incisivo discurso na Feira de Frankfurt de 2013 correu o mundo revelando a indignaĆ§Ć£o de um de seus mais premiados e brilhantes escritores. “A histĆ³ria do Brasil vem sendo alicerƧada quase que exclusivamente na negaĆ§Ć£o explĆcita do outro, por meio da violĆŖncia e da indiferenƧa”, disse Ruffato, na ocasiĆ£o.
O que mudou? “Sou um dos raros autores que vivem de literatura no Brasil. Houve um momento que tinha muita gente vivendo de literatura, mas muitos voltaram atrĆ”s, porque a situaĆ§Ć£o Ć© muito complicada. A minha sorte Ć© que tenho livros publicados em outros paĆses e consigo sobreviver muito em funĆ§Ć£o das viagens que faƧo para fora. Domingo acabei de voltar da Alemanha. Uma coisa foi viver de literatura nos anos auge, de 2005 atĆ© 2010. Foram anos em que conseguimos viver com certa tranquilidade financeira. A partir dali as coisas foram tomando outros rumos”, diz, certo de que o que faz tambĆ©m Ć© instrumento de mudanƧa. “Gosto muito de pensar que a literatura pode ser um excelente recurso para a reflexĆ£o a respeito da histĆ³ria. Muitas vezes a gente despreza a histĆ³ria porque a gente nĆ£o a conhece ou nĆ£o a compreende. Todos os meus livros tĆŖm a preocupaĆ§Ć£o primĆ”ria de fazer literatura, mas existe uma preocupaĆ§Ć£o secundĆ”ria de oferecer a oportunidade ao leitor de, alĆ©m de acompanhar um trecho da vida de alguĆ©m, proporcionar uma reflexĆ£o acerca da histĆ³ria do Brasil. ‘O verĆ£o tardio’ Ć© exatamente isso, Ć© uma tentativa de discutir o Brasil que vivemos no momento.”
O VERĆO TARDIO
LanƧamento neste sĆ”bado, 11, Ć s 11h, no Bar da FĆ”brica (Avenida GetĆŗlio Vargas 200 – Centro)