Como funciona a lei de transferĂȘncia de potencial construtivo
E como esse mecanismo pode ajudar a preservar imĂłveis tombados
Entre o drama e a tragĂ©dia reside a ação. Enquanto a primeira diz da possibilidade de interferĂȘncia, a segunda retrata o imponderĂĄvel. Quando um testemunho carece de conservação, o tombamento torna-se o mecanismo possĂvel. Por sua vez, quando a conservação de um bem torna-se um imperativo, tratĂĄ-lo em sua potĂȘncia torna-se um meio de nĂŁo deixar que o drama se transforme em tragĂ©dia. Passados 19 anos, uma lei municipal foi revogada sem nunca ter sido acionada. Em seu lugar, a Lei Complementar n.Âș 065, de 25 de julho de 2017, propĂ”e observar a potĂȘncia de imĂłveis tombados na cidade, cujo direito de construir foi impedido desde que seus tombamentos fizeram-se realidade. Drama de uns. TragĂ©dia de outros.
“Em tese, o tombamento de um bem Ă© uma premiação por aquele bem ter sobrevivido ao tempo, tornando-se representante de uma histĂłria. Mas a questĂŁo econĂŽmica pesa sobremaneira”, critica o arquiteto e professor do departamento de histĂłria da UFJF Marcos Olender, testemunha do empenho do colega Jorge Arbach para com a questĂŁo patrimonial, tĂŁo cara aos dois. HĂĄ sete anos, o arquiteto e artista grĂĄfico Jorge Arbach, alĂ©m de professor convidado da Faculdade de Arquitetura da UFJF, guardou seus lĂĄpis e pincĂ©is para retratar o tombamento em Juiz de Fora com outras tintas.
“Passei a ficar incomodado, porque ao mesmo tempo em que me deleitava com esse trabalho que ligava artes grĂĄficas e patrimĂŽnio, convivia com a divisĂŁo patrimonial, percebia que havia um drama paralelo acontecendo. Hoje o que prepondera Ă© que, para o proprietĂĄrio Ă© uma perda imobiliĂĄria e monetĂĄria ter uma edificação de propriedade tombada, jĂĄ que ele nĂŁo pode passar aos herdeiros valorizando como o mercado imobiliĂĄrio permite. Acaba virando uma tragĂ©dia. EntĂŁo, parei com toda as ilustraçÔes e fui buscar algo que fosse interessante, tambĂ©m, a essas pessoas. Foi entĂŁo que tomei conhecimento de uma lei de ressarcimento, de compensação, em vigor desde 1998, a lei de transferĂȘncia do potencial construtivo”, conta Arbach.
InĂ©dita, a tal lei apontava para a possibilidade de os proprietĂĄrios de imĂłveis tombados comercializarem a construção que nĂŁo podem executar, tendo em vista o impedimento a reformas e complementaçÔes de seus bens. InviĂĄvel, a redação do texto apontava para problemas que a nova lei pretende transpor. AlĂ©m de identificar a ausĂȘncia de divulgação da lei – “Deveria vir anexada ao decreto de tombamento” -, Arbach aponta para fatores como o despreparo de cartĂłrios, a resistĂȘncia do Poder PĂșblico, o desestĂmulo ao empreendedor com uma falta de proporcionalidade entre investimento e benefĂcio e um curioso entrave na regiĂŁo central, onde se situa grande parte dos imĂłveis tombados.
“Na lei diz que um bem tombado numa caracterĂstica de zona sĂł pode transferir para uma zona semelhante. Bom Pastor, Bairu e Santa Helena, por exemplo, sĂŁo uma ZR II e sĂł podem comercializar entre si. A maior parte dos bens tombados estĂĄ na ZC I, que Ă© o Centro, e num outro artigo diz que essa regiĂŁo nĂŁo pode receber nada, ou seja, fica impedida de vender e receber, sendo que nĂŁo existe outra ZC I na cidade. A prĂłpria lei, portanto, cria essa limitação”, aponta Arbach.
Compensação, ainda que tardia
Em tramitação por quase um ano e meio, considerando os seis meses nos quais nove dos 19 vereadores pediram vista, atrasando a aprovação, a nova lei, de autoria do vereador ZĂ© MĂĄrcio (PV), alinha-se a tantas outras cidades brasileiras e estrangeiras que adotaram o mecanismo criado nos anos 1970. “A primeira vez que foi utilizado foi na Europa, na ItĂĄlia, especificamente. No final daquela dĂ©cada, veio para os Estados Unidos. Nos anos 1980, Curitiba adotou, posteriormente Belo Horizonte tambĂ©m fez, e, em 1998, nĂłs adotamos”, enumera Jorge Arbach. Atualmente, a ferramenta estĂĄ presente em SĂŁo Paulo, JoĂŁo Pessoa, Natal, Salvador, dentre outros municĂpios.
“A finalidade primeira dessa lei Ă© gerar recursos, para que o proprietĂĄrio possa fazer a salvaguarda de seu bem. Acredito que quem tem um imĂłvel tombado vai ter, tambĂ©m, uma poupança, para usar na manutenção da casa e da forma que achar conveniente. Essa lei Ă© a maneira de preservar a histĂłria arquitetĂŽnica da cidade e gerar recursos para proprietĂĄrios, jĂĄ que eles podem vender um potencial, continuando a ser dono de seu imĂłvel”, observa Eduardo Felga, presidente do nĂșcleo juiz-forano do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).
“Quando a pessoa tem um bem tombado, por essa lei passa a ter o direito daquilo que seria possĂvel ser construĂdo na zona a qual pertence, descrita na Lei do Uso do Solo. Esse proprietĂĄrio, entĂŁo, solicita Ă Prefeitura uma certidĂŁo administrativa dando a ele a propriedade do potencial a ser construĂdo, que ele pode comercializar. Na cidade, porĂ©m, sĂł Ă© permitido um acrĂ©scimo de 20%, ou seja, esse potencial serĂĄ pulverizado pelo municĂpio”, explica Jorge Arbach, referindo-se Ă recente legislação e pontuando que os 20% dizem respeito a um percentual aceitĂĄvel, sem que seja preciso mexer em caixa de esgoto, abastecimento elĂ©trico e hĂdrico, vagas de estacionamento, isto Ă©, sem gerar grande impacto urbanĂstico.
Na nova lei, ainda, passados 15 anos, essa possibilidade de comercialização do potencial Ă© renovada, e pode ser feita uma nova negociação, que nĂŁo sofre influĂȘncia do mercado imobiliĂĄrio. “Quem estipula os valores Ă© a planta de valores do municĂpio, que calcula o IPTU. Ă necessĂĄrio que haja uma equivalĂȘncia entre quem compra e quem vende. Isso leva a descentralizar os empreendimentos”, pontua Arbach. A equação Ă© simples: ĂĄrea do gerador x valor venal do gerador = ĂĄrea do receptor x valor venal do receptor. A comercialização, contudo, Ă© feita paulatinamente, respeitando a revitalização do imĂłvel tombado.
“Inicialmente, o proprietĂĄrio recebe 35% do direito de comercializar, o que permite fazer um projeto de restauro do imĂłvel. Ao apresentar e aprovar esse projeto, esse proprietĂĄrio recebe os outros 35%, para fazer a recuperação. Feitas as obras, receberĂĄ os 30% restantes, que serĂĄ totalmente dele”, sintetiza o artista grĂĄfico, que agora faz canecas com desenhos de bens tombados na cidade, como simpĂĄticos souvenirs.
Atenção pelo que virå
A ignorĂąncia acerca da legislação sobre transferĂȘncia de potencial construtivo em Juiz de Fora Ă©, para Jorge Arbach, o principal motivo para que a Ășnica tentativa de utilização da lei tenha fracassado. “Acredito que a falta de ciĂȘncia da lei tenha sido a barreira”, comenta. Segundo o artigo “TransferĂȘncia do direito de construir e dificuldades de planejamento em cidades mĂ©dias: o caso de Juiz de Fora”, de autoria da pesquisadora BĂĄrbara Lopes Barbosa, a Congregação das IrmĂŁs Carmelitas da Divina ProvidĂȘncia, proprietĂĄria do ColĂ©gio Nossa Senhora do Carmo, no bairro Santa Helena, solicitou e recebeu a certidĂŁo contendo o cĂĄlculo do potencial construtivo do imĂłvel tombado em 2000, com o intuito de reunir recursos para a restauração do prĂ©dio.
“Entretanto, ao conseguir o valor necessĂĄrio para esta obra por outros meios, nĂŁo levou adiante o processo de transferĂȘncia, arquivando a certidĂŁo que garante o potencial construtivo do imĂłvel. Ao ser questionada se houve procura por parte do mercado imobiliĂĄrio para compra deste potencial, a administração afirmou que nunca houve qualquer manifestação de interesse”, assinala o texto apresentado no 16Âș Encontro Nacional da Associação Nacional de PĂłs-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, realizado em 2015, em Belo Horizonte.
De acordo com Marcos Olender, a nova lei de Juiz de Fora “visa a dar eficiĂȘncia Ă lei antiga, fazendo com que, efetivamente, o proprietĂĄrio possa se utilizar dela. NĂŁo sĂł compensa economicamente, como tambĂ©m estimula o futuro, enfraquecendo algum tipo de resistĂȘncia em relação a novos tombamentos”. “Hoje temos uma visĂŁo de que os bens histĂłricos de interesse de preservação seria dos anos 1940 para trĂĄs. Mas o tempo estĂĄ passando, e esse interesse pelo patrimĂŽnio arquitetĂŽnico estĂĄ se dilatando”, ressalta Arbach.
“Tem porvir prĂ©dios pulsando, que serĂŁo, daqui a 30 anos, interesse patrimonial. As vilas operĂĄrias dos italianos e alemĂŁes, que nos encantam e que encontramos volta e meia por aĂ, diria que hoje sĂŁo os condomĂnios fechados, com belos projetos de conjuntos unifamiliares. Essa lei vem, tambĂ©m, para o que virĂĄ”, completa o artista grĂĄfico e arquiteto, citando conjuntos como o Granville, na Cidade Alta.
O exemplo e o entrave
Exemplo no paĂs, Curitiba, que jĂĄ comercializou milhĂ”es de metros quadrados desde que adotou o mecanismo, em 1982, conseguiu revitalizar importantes espaços pĂșblicos utilizando-se da transferĂȘncia do direito de construir. Reaberta em 2012, a Catedral BasĂlica Menor Nossa Senhora da Luz, principal do ParanĂĄ, comercializou 11.430 mÂČ, gerando os R$ 4 milhĂ”es necessĂĄrios para sua integral restauração. Em seus estudos acerca da aplicação do mecanismo na capital paranaense, a arquiteta e pesquisadora Ana Paula Mota de Bitencourt aponta para a “eficiĂȘncia da administração pĂșblica em coordenar todo o processo” como a principal via a justificar o sucesso da lei numa paisagem capaz de equilibrar-se entre memĂłrias e contemporaneidade.
Em Juiz de Fora, contrariamente, a mesma CĂąmara Municipal que aprovou a nova lei gesta um novo mecanismo que permite a regularização de imĂłveis construĂdos atĂ© 31 de dezembro de 2015. O projeto, de autoria do vereador Pardal (PTC), complementa outra lei, que oferecia a via da regularização para imĂłveis edificados atĂ© abril de 2012.
As garras do mercado
Considerados pelos defensores do patrimĂŽnio cultural como um desestĂmulo ao uso da nova lei, a tabela de multas e os prazos dilatados se mostraram, ao longo dos anos, mais interessantes e rentĂĄveis do que a compra do potencial construtivo. “Os prĂłprios construtores preferiam ser multados a comprar o potencial”, pontua Jorge Arbach. “De que adianta ter uma lei dessa natureza se nĂŁo tem uma estrutura efetiva para gerir a preservação?”, questiona o professor da UFJF Marcos Olender, para logo criticar: “Enquanto houver imĂłveis irregulares e vereadores apresentando projetos para a regularização deles, a lei de transferĂȘncia do direito de construir nĂŁo farĂĄ sentido.”
Segundo Eduardo Facio, engenheiro civil responsĂĄvel pela Secretaria de Atividades Urbanas da Prefeitura, regularização e compra de potencial construtivo fazem parte de universos distintos. “Essa lei nĂŁo regulariza nada antigo ou que esteja em andamento”, ressalta, para logo explicar a competĂȘncia da pasta que, com a lei sendo colocada em prĂĄtica, receberĂĄ e gerenciarĂĄ os dados de quem vendeu e de quem comprou direito de construir. “Analisamos projetos de acordo com as leis existentes. Irregulares sĂŁo as construçÔes que acontecem sem ter projeto aprovado pela Prefeitura, sem alvarĂĄ de construção. Toda obra que descobrimos sem ter alvarĂĄ Ă© embargada e para na hora”, completa, citando, ainda a multa cobrada ao dono do empreendimento.
Contudo, o universo das fiscalizaçÔes parece muito mais amplo do que a enxuta equipe pode dar conta. Para cada fiscal, hoje, na cidade, existe uma paisagem com cerca de 14 mil habitantes. HĂĄ uma fiscalização de rotina, secretĂĄrio? “O fiscal de posturas passa na obra, bate na porta, chama o responsĂĄvel e pede o alvarĂĄ”, responde Eduardo Facio. Ele estĂĄ sempre na rua? “Tem fiscais que fazem todos os tipos de fiscalização de posturas o tempo todo, alĂ©m de irmos atrĂĄs quando alguĂ©m denuncia, reclama.
Vizinho nunca gosta da obra do cara do lado. A gente visita, entĂŁo. Toda obra que descobrimos fiscalizamos.” E como Ă© a equipe hoje? “SĂŁo os fiscais de posturas que tĂȘm o direito de exigir documentos desse tipo de um empreendedor.” E hoje quantos fiscais a cidade tem? “Devemos ter cerca de 40 fiscais de posturas para todas as regiĂ”es da cidade, que sĂŁo oito.” Satisfaz? “NĂŁo.”
“Ă preciso coibir os projetos irregulares”, reforça o presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil em Juiz de Fora Eduardo Felga, pontuando que, enquanto existirem imĂłveis irregulares, que escapem das fiscalizaçÔes, existirĂĄ o conforto dos infratores de que, em algum futuro, uma lei aprovada permitirĂĄ que seu imĂłvel seja regularizado, num valor abaixo do que seria praticado na compra de potencial construtivo. Num cenĂĄrio ideal, portanto, sobressai a latĂȘncia de um mercado e sua responsabilidade por retirar do cenĂĄrio de prĂ©dios tomba