ViolĂȘncia se descortina nas 801 vidas perdidas em seis anos
Na Ășltima reportagem da sĂ©rie, a Tribuna faz um mapeamento dos homicĂdios ocorridos desde 2012 no municĂpio, quando teve inĂcio a escalada da violĂȘncia. A dor de quem perdeu familiares para o crime Ă© lembrada. Especialistas fazem anĂĄlises do quadro preocupante e apontam alternativas que vĂŁo alĂ©m da repressĂŁo, que nĂŁo tem sido capaz de arrefecer os nĂșmeros
A violĂȘncia urbana em Juiz de Fora tomou proporção devastadora e se descortina na perda de mais de 800 vidas para o crime nos Ășltimos seis anos, 403 delas de jovens com atĂ© 25 anos. Apesar das centenas de mortes, muitas de pessoas que nem sequer conseguiram planejar um futuro, a cidade parece ter sucumbido Ă lĂłgica dos grandes centros urbanos, onde a impessoalidade das relaçÔes e a correria do dia a dia tapam os olhos de seus habitantes diante da tragĂ©dia alheia. Mas a realidade precisa ser vista: sĂł na Vila Olavo Costa, Zona Sudeste, 46 pessoas foram brutalmente executadas nesse perĂodo. O nĂșmero equivale a um ĂŽnibus repleto de passageiros e, sim, Ă© um desastre.
Se ampliarmos o raio de visĂŁo para as circunvizinhas vilas Ideal, Ozanan e o Bairro Furtado de Menezes, os Ăłbitos entre os anos de 2012 a 2017 chegam a 86, ou a mais de um dĂ©cimo dos homicĂdios do perĂodo em toda a cidade. AtrĂĄs da Olavo Costa, o SĂŁo Benedito aparece como o segundo local mais violento nestes seis anos, com 32 crimes, e alcança 54 junto com Vila Alpina e Santa CĂąndida, situados bem prĂłximos. Em seguida, Linhares tem 27 assassinatos e, aglutinado com Bom Jardim e Santa Rita, totaliza 56. Isolada, Benfica aparece na nona posição dos bairros mais sangrentos, mas o nĂșmero Ă© elevado a 47 com as Vilas Esperança I e II. Criado em 2012, o Residencial Parque das Ăguas, na Zona Norte, do programa Minha Casa, Minha Vida, desponta como umas das ĂĄreas mais alarmantes do perĂodo, se levarmos em conta sua pequena dimensĂŁo geogrĂĄfica, com menos de 600 casas: 15 pessoas jĂĄ foram assassinadas.
Na sĂ©tima e Ășltima reportagem da sĂ©rie “Vidas perdidas – um raio X dos homicĂdios em JF”, a Tribuna mapeia as mortes violentas desde 2012 – quando os homicĂdios dobraram e começaram a se multiplicar. O levantamento exclusivo foi realizado cuidadosamente ao longo dos anos, inclusive junto aos hospitais, pois muitas vĂtimas morrem dias e atĂ© meses depois de terem sido alvo de açÔes criminosas. Como a PolĂcia Militar contabiliza apenas os falecimentos ocorridos ainda durante os registros das ocorrĂȘncias, o objetivo Ă© apontar o quadro mais prĂłximo do real. A evidĂȘncia Ă© que nĂŁo se pode mais esperar para prevenir com medidas eficazes o aliciamento de inocentes pelo crime e para resgatar a juventude jĂĄ imersa na violĂȘncia que suga atĂ© o instante do tiro ou da morte. Como revigorar o sentimento de esperança como alternativa ao caos? Especialistas e autoridades ouvidos pela Tribuna nesta sĂ©rie apontam possĂveis caminhos para uma cidade mais generosa em todos os sentidos, sobretudo com suas crianças e seus jovens.
Manchas vermelhas
Por trĂĄs das manchas vermelhas destacadas no mapa estĂŁo muitas lĂĄgrimas de famĂlias inteiras e tambĂ©m incontĂĄveis falhas do Poder PĂșblico, vĂĄrias delas histĂłricas, que resultaram em crescimento urbano desordenado, desigualdade social, desemprego, baixo nĂvel de escolaridade e um sistema penal que nĂŁo ressocializa. A situação Ă© agravada pelo trĂĄfico cada vez mais armado, como comprova o fato de que 78% dos assassinatos foram provocados por armas de fogo, totalizando 629. Em 2017, o nĂșmero de mortes a tiros atingiu seu ĂĄpice, representando 83% (114 casos), enquanto em 2012 o Ăndice representava 66%, equivalente a 66 mortes.
Os homens disparadamente morreram mais (92%), e os jovens de atĂ© 25 anos correspondem Ă metade das vĂtimas, sendo que 311 tinham mais de 18 anos e outros 92 eram adolescentes. Em 37% dos casos, os crimes aconteceram em finais de semana. Apesar de ter sido ultrapassada pela Zona Leste no Ășltimo ano, a Zona Norte lidera as mortes violentas entre 2012 e 2017, com 245 homicĂdios, enquanto a Sudeste ficou em segundo no triste ranking, com 175. Na anĂĄlise dos seis anos, a Leste estĂĄ em terceiro, com 161 Ăłbitos. Com nĂșmeros bem menores, seguem as regiĂ”es Sul (67), Cidade Alta (56), Nordeste (53), Central (23) e Zona Rural (21).
Em 2017, o Centro apresentou o menor nĂșmero de homicĂdios desde 2012, com um assassinato, mas totaliza 20 nos Ășltimos seis anos. Na contramĂŁo, o SĂŁo Benedito vivenciou, nos Ășltimos 12 meses, a explosĂŁo no nĂșmero de casos, com dez mortos.
“Quem Ă© mĂŁe nunca supera”
“Choro todos os dias. Parece que minha vida acabou. Estou vivendo por viver. Quem Ă© mĂŁe nunca supera”, desabafa a domĂ©stica VanderlĂ©ia Ribeiro Silva, 46 anos, vĂtima de uma tragĂ©dia cuja dor Ă© imensurĂĄvel: seus dois filhos, Lucas Ribeiro da Silva, 17, e Elias Alves Ribeiro, 19, morreram abraçados, cruelmente executados com tiros na cabeça em plena manhĂŁ do dia 28 de julho de 2016 na Vila Ozanan, Zona Sudeste. Um amigo deles, 16, que tambĂ©m estava sentado na mesma escada de acesso a residĂȘncias na Rua AnĂbal de Paiva Garcia, foi baleado, mas conseguiu correr e sobreviveu. Na Ă©poca, a PolĂcia Civil apurou que a ordem para matar um dos irmĂŁos havia partido do Ceresp. O mandante, 26, jĂĄ teria cinco passagens por homicĂdio. A sentença de morte teria sido emitida porque Lucas teria se recusado a deixar um ponto de drogas, no mesmo local onde foi assassinado. Ainda conforme a polĂcia, o suposto executor do duplo homicĂdio, 16, foi morto com seis tiros no dia seguinte ao crime por vingança na Vila Olavo Costa, na mesma regiĂŁo. O suspeito de matĂĄ-lo seria outro adolescente, 17.
AlĂ©m de escancarar o tenebroso cĂrculo de homicĂdios de jovens, o caso chocante demonstra o sofrimento daqueles que amam incondicionalmente, mas se veem de mĂŁos atadas diante de uma realidade assustadora. “Eu estava trabalhando e, quando cheguei, nĂŁo podia fazer mais nada. NĂŁo me conformo e sinto muita falta deles. Como pode uma maldade dessas?”, questiona VanderlĂ©ia. “DĂłi demais, a gente nĂŁo esquece. Quero mudar daqui, porque sempre passo perto do local e tenho muitas lembranças dentro de casa”, diz a mĂŁe, que tem uma filha, 17.
A domĂ©stica conta que o pai de um dos jovens nem chegou a registrĂĄ-lo, enquanto o genitor do outro foi embora quando o filho ainda era pequeno. Com a responsabilidade de criĂĄ-los sozinha, a mulher nĂŁo conseguiu que eles completassem o ensino fundamental. “Trabalhei em muitas casas, senĂŁo morriam de fome. Como fazer? Lucas sĂł foi atĂ© a terceira ou quarta sĂ©rie. Ficou com medo de ir para a escola, porque estava sendo ameaçado. Eu falava para cuidarem das amizades, para nĂŁo caĂrem nesse mundo. Elias jĂĄ tinha melhorado. Eles atĂ© brigavam, mas um protegia o outro.” Para a domĂ©stica, faltam atividades extra escolares para que jovens mais vulnerĂĄveis nĂŁo morram como seus filhos. “NĂŁo quero que ninguĂ©m passe pelo que passei. Ă muito triste.”
Criminalidade nĂŁo Ă© exclusiva das classes populares
A filĂłsofa alemĂŁ Hannah Arendt, uma das pensadoras mais importantes do sĂ©culo XX, defendia que era muito perigoso deixar um segmento social sem nada a perder, porque sem ter o que esperar, as pessoas podiam ser capazes de tudo. O pensamento filosĂłfico dela sobre a polĂtica, o totalitarismo, a responsabilidade, a verdade, o mal, entre outros, atĂ© hoje dialogam com as ideias e as questĂ”es contemporĂąneas. Numa Ă©poca em que a mĂĄxima “bandido bom Ă© bandido morto” encontra eco nos mais variados discursos, o pensamento de Arendt Ă© vital dentro da temĂĄtica abordada pela sĂ©rie “Vidas Perdidas”. Quem traz a filĂłsofa para essa discussĂŁo Ă© o pesquisador e professor da Faculdade de Comunicação da UFJF, Wedencley Alves, que tem estudos na ĂĄrea de violĂȘncia. “Se por muito menos a classe mĂ©dia que nĂŁo Ă© a maior vĂtima jĂĄ prega a violĂȘncia, por meio do discurso do Ăłdio, como Ă© que jovens que sabem que estĂŁo com os dias contados vĂŁo reagir de forma moderada”, dispara o professor.
Na concepção dele se faz necessĂĄrio entender a noção de criminalidade como algo que nĂŁo Ă© exclusivo Ă s classes populares, porque criminalidade tem a ver com crimes, que tambĂ©m podem ser de colarinho branco, sonegação de impostos, violĂȘncia intencional no trĂąnsito. “Imagina se um jovem bem-sucedido que aprendeu a sonegar impostos Ă© tido como envolvido com a criminalidade? Sim, ele estĂĄ, mas nĂŁo Ă© visto assim. Da mesma forma que um rapaz que leva ecstasy para a festa com os amigos, o que seria trĂĄfico de drogas, nĂŁo Ă© visto dessa forma. EntĂŁo, Ă© preciso desmistificar a ideia de que a criminalidade Ă© somente aquela que tem a ver com o pobre. Ela tem a ver com qualquer tipo de crime”, ressalta Wedencley.
Outro ponto fundamental para o qual Ă© preciso se atentar na visĂŁo do professor Ă© que existem nĂveis de criminalidade. Uma coisa Ă© alguĂ©m que pega em arma para matar, outra Ă© um indivĂduo que atua como “fogueteiro” no trĂĄfico de drogas. “Ă preciso perceber que, dentro dos nĂveis de criminalidade, existem vĂĄrias atividades distintas e que devem ser consideradas. Boa parte dos nossos presos, por exemplo, sĂŁo jovens que eram aviĂŁozinhos, e eles sĂŁo jogados lĂĄ, nĂŁo hĂĄ julgamento, e isso sĂł vai produzindo um ciclo absolutamente desesperador e fomentador da violĂȘncia”, avalia.
Wedencley acredita que, para minimizar a violĂȘncia, Ă© preciso investir numa cultura de paz. “Para isso Ă© preciso o apoio da população, criação de polĂticas pĂșblicas. Para o governador de estado, por exemplo, espera-se que ele passe por uma polĂtica de responsabilização. Ele Ă© o comandante e o chefe das polĂcias e tem que ser chamado a colocar metas de redução de violĂȘncia do estado, que Ă© um grande fator de fomento Ă violĂȘncia que vem dos jovens. Os estados que matam mais tĂȘm, consequentemente, sociedades que matam mais”.
Especialista destaca o insucesso do aumento da repressĂŁo
Com um trabalho desenvolvido junto a adolescentes e jovens hĂĄ mais de dez anos em Juiz de Fora, a professora de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF e coordenadora do NĂșcleo de ExtensĂŁo e Pesquisa em CiĂȘncias Criminais (NEPCrim), Ellen Rodrigues, defende que a melhora desse cenĂĄrio pode vir pelo emprego em investimento em açÔes afirmativas.
“Se quisermos outros resultados, temos que fazer novas escolhas. A opção pelo aumento da repressĂŁo e baixos investimos em educação, lazer e oportunidades de trabalho vem mostrando claramente seu insucesso. AtĂ© quando os poderes pĂșblicos vĂŁo investir neste modelo? AtĂ© quando a sociedade vai compactuar com isso? O artigo 227 da Constituição Federal dispĂ”e que Ă© “dever da famĂlia, da sociedade e do Estado assegurar Ă criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito Ă vida, Ă saĂșde, Ă alimentação, Ă educação, ao lazer, Ă profissionalização, Ă cultura, Ă dignidade, ao respeito, Ă liberdade e Ă convivĂȘncia familiar e comunitĂĄria, alĂ©m de colocĂĄ-los a salvo de toda forma de negligĂȘncia, discriminação, exploração, violĂȘncia, crueldade e opressĂŁo”.
Para a professora Ellen, “quando um adolescente descumpre uma lei, o Estado e a sociedade cobram dele este descumprimento, sujeitando-lhe Ă maior repressĂŁo e punição. E, quando o Estado, a FamĂlia e a Sociedade nĂŁo cumprem os deverem impostos pela Constituição para com os adolescentes, quem os cobrarĂĄ? Certamente nĂŁo Ă© desejando que os jovens pobres e negros se matem entre si que estaremos colaborando”. Ellen Ă© uma das coordenadoras do projeto “AlĂ©m da Culpa: Justiça Restaurativa para Adolescentes”, que atingiu, por meio de suas intervençÔes entre 2015 e 2016, 652 pessoas nos procedimentos de apuração de ato infracional e 595 pessoas nos de execução de medidas e reinserção familiar, totalizando 1.247 beneficiados afetados diretamente pelas açÔes restaurativas. O “AlĂ©m da Culpa” foi tema da quinta reportagem da sĂ©rie “Vidas Perdidas”, publicada na Ășltima sexta-feira (12).
“JF tem jeito?”
Em seis anos, mais de 800 vidas foram perdidas, em Juiz de Fora, para a violĂȘncia. O acĂșmulo Ă© estarrecedor, principalmente, quando se constata que cerca de 400 assassinados sĂŁo jovens com atĂ© 25 anos de idade. Com a sĂ©rie “Vidas Perdidas – um Raio X dos homicĂdios em Juiz de Fora”, a Tribuna objetiva mostrar que a violĂȘncia nĂŁo Ă© apenas uma questĂŁo de polĂcia e que precisa ser debatida e combatida por vĂĄrios segmentos. Para tanto, se faz fundamental provocar a sociedade, chamĂĄ-la a sua responsabilidade, numa tentativa de encontrar caminhos para traçar um futuro que possa partir de uma cultura de paz.
Conheça a metodologia por trås do levantamento da Tribuna
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