Juiz de Fora cresceu sobre lagoas e córregos
A cidade, localizada no vale da planície de inundação do Paraibuna, precisa reaprender a conviver com a sua natureza.
Juiz de Fora já foi cercada por água. As chamadas plantas hídricas — documentos cartográficos que registravam rios, córregos, lagoas e áreas inundáveis — eram fundamentais para planejar a expansão urbana. Esses mapas revelavam não apenas a geografia natural, mas também os desafios que a cidade teria de enfrentar.
Ao longo do tempo, porém, em vez de valorizar a água como parte da paisagem, prevaleceu outra lógica: a de ocultar e suprimir os cursos naturais. Por isso, a história urbana da cidade é marcada pela canalização e pelo aterramento de córregos e lagoas que, aos poucos, desapareceram do olhar cotidiano.
O exemplo mais emblemático é a Lagoa da Gratidão que ocupava mais de 55 mil metros quadrados no coração da cidade, nas imediações do atual Largo do Riachuelo. Considerada um entrave ao crescimento, foi aterrada no início do século XX com terra retirada do Morro do Pedro Schubert, atual região do Museu de Arte Murilo Mendes. Assim, o espelho d’água cedeu lugar ao traçado urbano que simbolizava desenvolvimento e modernidade.
Na década de 1960, foi a vez do córrego Independência, canalizado para abrir espaço à avenida homônima e ao prolongamento da Rua Santo Antônio. A Lagoa do Bom Pastor, aterrada com 30 mil metros cúbicos, em 1971, encerrou simbolicamente esse ciclo. Outros cursos menores também foram engolidos pelo asfalto, reduzindo drasticamente a presença visível da água na cidade. Ação justificada pela recorrência de inundações e a teoria de miasma, na qual se acreditava que as águas paradas e poluídas eram responsáveis por disseminar doenças como cólera.
“Eu nasci antes da cidade. Meus braços eram largos, alimentados por córregos que desciam dos morros e por lagoas que refletiam o céu. Meu traçado sinuoso e lento. Nas plantas antigas, os homens desenharam meus caminhos e os das minhas águas irmãs. Ali estava escrito quem eu era: vida que se espalhava por todos os lados”
Rio Paraibuna
O trabalho do Núcleo de Geografia Histórica
Grande parte dessa memória vem sendo resgatada pelo Núcleo de Pesquisa em Geografia Histórica da UFJF, coordenado pelo professor Pedro José de Oliveira Machado. O grupo reúne estudantes e pesquisadores que investigam como a geografia natural foi transformada pela urbanização e quais marcas esse processo deixou.

Um desses pesquisadores é o professor, mestre e doutorando em Geografia Luciano Caramez. Segundo ele, as plantas hídricas são a chave para compreender esse passado. “Esses documentos cartográficos nos permitem ver como a água estruturava e delimitava o território e, ao mesmo tempo, como ela foi sendo suprimida para abrir espaço ao crescimento”, explica.
O núcleo trabalha com o recorte da Juiz de Fora dos séculos XIX e XX, pesquisando mapas, arquivos históricos e registros fotográficos, além de jornais e revistas da época, para reconstruir a paisagem original da cidade. O objetivo não é apenas preservar a memória, mas também oferecer subsídios para pensar soluções urbanas atuais e futuras. “Quando compreendemos os caminhos naturais da água, entendemos também os pontos de vulnerabilidade da cidade. Muitos alagamentos de hoje repetem a lógica da ocupação do passado”, reforça.
O deserto de cursos d’água visíveis
Caraméz resume essa trajetória em uma imagem contundente: Juiz de Fora vive hoje um deserto de cursos d’água visíveis. Com lagoas aterradas e córregos canalizados, restou apenas o Rio Paraibuna e poucos afluentes como referência hídrica aparente. “Se fizermos um recorte transversal na cidade, a única presença de água mais significativa que aparece é o Rio Paraibuna. Só que o próprio rio dentro do perímetro urbano já não é o mesmo há muitos anos. Sofreu diversos processos de retificação”, aponta o professor.
Esse cenário traz consequências diretas para o presente. Com a perda de suas fontes mais próximas, Juiz de Fora passou a depender de mananciais cada vez mais distantes para garantir o abastecimento. “Estamos nos afastando das nossas próprias fontes históricas. Isso significa mais custos, maior complexidade no tratamento e maior vulnerabilidade em tempos de estiagem ou de crise climática”, alerta Caramez.

Reaprender a conviver com as águas
Os processos de ocupação de Juiz de Fora mostram como a água foi tratada como inimiga do progresso. Mas a reflexão atual da arquitetura urbana aponta justamente para a necessidade de uma mudança cultural: reconhecer que rios, córregos e lagoas podem ser aliados na qualidade de vida urbana.
Cidades que hoje recuperam cursos d’água e devolvem os rios e córregos à população mostram que a convivência com a água traz ganhos ambientais, sociais e econômicos. Em Juiz de Fora, revisitar as plantas hídricas pode ser o primeiro passo para reconstruir esse vínculo perdido.
Como resume Luciano Caramez: “Se no passado a água foi tratada como problema, talvez seja hora de reaprender a olhar para ela como riqueza. Juiz de Fora nasceu cercada por água, e negar essa condição é negar a própria origem da cidade”.