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O queijo que desafia o tempo: o sabor da Canastra

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Ao pé da serra moldada em pedra fica São Roque de Minas, uma cidade com pouco mais de 7 mil habitantes, onde o patrimônio cultural imaterial do Brasil toma forma, cheiro e gosto. Ali, o queijo da Canastra é mais do que alimento: é o tempo curado, um gesto que atravessa gerações. Entre o vento do cerrado e o canto das águas que descem da serra, o queijo é linguagem e memória, feito à mão como a reza de um bom mineiro. 

(Foto: Pedro Moysés)

Dizem que a Serra da Canastra tem alma. E que, quando o sol se deita sobre suas pedras, o cheiro do leite fresco sobe como uma prece. Nas fazendas de São Roque de Minas, o queijo nasce da arte de transformar o simples em sagrado. É o Brasil e Minas se revelando em forma de sabor, patrimônio e identidade.

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É pela compreensão de que, por meio dessa arte, é possível contar histórias, conhecer tradições, compreender a gastronomia, a economia e a cultura da região que o queijo canastra é o protagonista da quarta reportagem da série Tribuna por Minas

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"Naquela época (em que aprendeu) não se vendia queijo para turista. Os queijos eram guardados e ficavam assim às vezes 40, 60 dias, era pra casa mesmo". (Foto: Pedro Moysés)

O que é o queijo canastra?

Um queijo canastra só pode ser assim chamado se for produzido ali, ao pé da Serra. Isso acontece porque somente nessa região é possível encontrar um terroir (ou ‘terruá’, como dizem os nativos) específico. O terroir, que é o conjunto único de fatores naturais, e sua microflora única, confere ao queijo canastra características sensoriais insubstituíveis.

O objetivo é diminuir o nível de ração e concentrado “ao máximo possível, porque o queijo canastra depende do terroir”, explica Robert de Freitas, responsável pelas visitas técnicas à Roça da Cidade, uma fazenda produtora do queijo canastra na região. (Foto: Pedro Moysés)

Para que as vacas tenham contato com a microflora característica da região, elas devem ser criadas soltas, para que possam pastar e, dessa forma, absorver as bactérias presentes no solo que, posteriormente, serão incorporadas ao leite, que dá origem ao queijo. O objetivo é diminuir o nível de ração e concentrado “ao máximo possível, porque o queijo canastra depende do terroir”, explica Robert de Freitas, responsável pelas visitas técnicas à Roça da Cidade, uma fazenda produtora do queijo canastra na região.

Produção que atravessa gerações

(Foto: Pedro Moysés)

Na beira da estrada de chão que liga a Zona Rural ao pequeno Centro de São Roque de Minas, nossa equipe encontrou Néria Rabelo. Em uma casa cercada por patos, galinhas e perus, que pertenceu ao seu bisavô, Néria é a quarta geração da família a produzir queijos canastra. “Meus pais faziam, meus avós, meus bisavós, todo mundo aqui fazia (queijo)”, relata. “Quem me ensinou foi minha mãe. A gente era pequenininha e queria fazer queijo, e ela ficava brava, falava ‘tira essa mão suja do queijo’. Aos poucos, fui aprendendo, ela colocava um banquinho para eu alcançar a bancada e, aos 6 anos, eu já sabia fazer.” Apesar de nova, Néria explicou que não é exceção à regra. “É assim com todo mundo aqui na região, praticamente todo mundo que sabe fazer queijo.” 

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Em uma casa cercada por patos, galinhas e perus, que pertenceu ao seu bisavô, Néria é a quarta geração da família a produzir queijos canastra. Na foto, a representação de três gerações da família. (Foto: Pedro Moysés)

O ato de fazer o queijo é enxergado pela população de São Roque quase como um rito: apesar de começarem desde novos, quase como uma brincadeira, é algo que é levado muito a sério. “Tem que ter uma prática, o queijo não pode ser feito de qualquer maneira.”

“Naquela época (em que aprendeu) não se vendia queijo para turista. Os queijos eram guardados e ficavam assim às vezes 40, 60 dias, era pra casa mesmo”. (Foto: Pedro Moysés)

Ela explica que, por muito tempo, o queijo era feito apenas para consumo da própria família. “Naquela época (em que aprendeu) não se vendia queijo para turista. Os queijos eram guardados e ficavam assim às vezes 40, 60 dias, era pra casa mesmo”, relembra. Foi recentemente que o queijo se tornou um produto comercial, em especial para os turistas. “Tem uns dez anos, no máximo, talvez nem dez, e já vem muita gente aqui.” 

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O fazer do queijo, na Canastra, não é um ofício isolado: é uma prática partilhada. Em São Roque, quase toda família tem uma banca, uma forma, uma história. Néria é uma entre tantas mulheres que mantêm viva essa tradição coletiva, que se aprende observando, errando e refazendo.

No gesto repetido de cortar a massa, prensar, salgar e esperar o tempo agir, Néria e tantos outros transmitem um saber que atravessa gerações. O queijo, para eles, é mais do que sustento, é uma forma de permanência, uma herança que se renova a cada manhã.

Reconhecimento do trabalho artesanal

Mas o queijo da Canastra não é só afeto: é também resistência. Por décadas, o queijo feito à mão, de leite cru, que sustenta a família de Néria e tantos outros, foi tratado como produto ilegal no Brasil. Os queijeiros da Canastra, mesmo mantendo práticas centenárias, enfrentaram barreiras sanitárias e burocráticas que ameaçavam o modo artesanal de produção. Foi preciso que produtores se unissem, com ajuda de técnicos e até de mestres franceses, para provar que tradição e segurança podiam andar lado a lado.

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Foi nesse cenário que surgiu a luta de João Carlos, o Joãozinho de Messias, dono da Roça da Cidade, que conhece de perto a história do queijo e da serra. Ele lembra que o problema começou no pós-guerra, quando o Brasil adotou normas sanitárias estrangeiras e acabou marginalizando a produção artesanal. “Os americanos impuseram essa lei de 1950… nós, que somos uma cultura centenária, passamos pra ilegalidade.”

“Tudo que for produzido aqui vai receber um selo de certificação de qualidade”, explica o produtor. “Queremos ser a primeira marca coletiva de território de Minas Gerais e do Brasil.” (Foto: Pedro Moysés)

Por décadas, o queijo de leite cru, feito à mão, na roça e com flora microbiana própria, foi tratado como risco sanitário. A legislação reconhecia apenas o produto pasteurizado, ignorando a complexidade e o valor cultural do modo artesanal.

A virada de chave veio com a chegada dos franceses, que enxergaram na Canastra um dos melhores terroirs do mundo para a produção de queijo. “Os franceses vieram mostrar isso pra nós e nos ensinaram tudo… quatro conceitos básicos: água potável, animais livres de zoonoses, boas práticas e rastreabilidade.”

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Com essa base técnica e sensorial, a partir da luta dos produtores artesanais, o estado de Minas Gerais criou, em 2002, a  Lei nº 14.185, a primeira lei do país a autorizar o queijo artesanal de leite cru, o que abriu caminhos para o reconhecimento nacional e internacional do produto.

Território da Canastra

Desde então, o queijo da Canastra passou a colecionar medalhas e prestígio ao redor do mundo, tudo sem perder o sabor da serra. Agora, a luta se volta para outro caminho: consolidar o nome Canastra como marca de um território coletivo e protegido, valorizando o que nasce de suas montanhas, do café ao mel, do azeite ao vinho.

Segundo João, 11 municípios já são reconhecidos como pertencentes ao Território da Canastra, “tudo que for produzido aqui vai receber um selo de certificação de qualidade”, explica o produtor. “Queremos ser a primeira marca coletiva de território de Minas Gerais e do Brasil.”

A ideia partiu de um modelo europeu. “A gente se inspirou na Itália, onde cada território tem sua marca coletiva. Lá, tudo que é produzido dentro daquele espaço, desde o queijo, o vinho, o azeite… tudo leva o nome da região. É isso que queremos fazer aqui também.”

A proposta é ousada: transformar a Canastra em um território reconhecido pela autenticidade de seus sabores e saberes. Uma marca viva, moldada em pedra, leite e memória, como a própria serra que a batiza.

Quando o sol se põe atrás da serra, o cheiro da cura do queijo sobe como reza antiga. Na Canastra, o tempo não se mede em horas, mas em curas. No gesto de quem amassa a massa e espera o tempo agir, há algo de sagrado e político, e cada queijo é um retrato da serra. Na Canastra, o sabor é uma forma de lembrar, e o queijo, um modo de permanência de uma cultura centenária.

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