Eu brinquei, mas brinquei tanto que sĆ³ parei quando fiz treze anos e beijei um menino na boca pela primeira vez. Adorava brincar. Casinha, boneca, comidinha, professora. Brincava o dia inteiro e era a Ćŗnica coisa que me interessava durante a maior parte do dia.
Meus pais trabalhavam uma jornada inteira. Eu ficava toda tarde na casa da minha avĆ³ onde moravam, na casa ao lado, meu tio e minha tia.
Nas minhas brincadeiras eu era mĆ£e de trĆŖs filhos, era professora, fazia a comida, limpava e arrumava a casa. Basicamente, eu imitava a minha mĆ£e. Minha famĆlia era uma como outra qualquer: meus tios nos contavam histĆ³rias, chamavam a minha atenĆ§Ć£o se eu fizesse algo errado, me davam doces escondido da mĆ£e e antes do almoƧo, me levavam para passear, me falavam das plantas e dos bichos. Ćs vezes, contavam para mim e meus primos histĆ³rias de medo, assombraĆ§Ć£o, fantasma. Mas na hora que a gente ia dormir, a famĆlia nos enchia de afeto, nos servia um copo de leite queimadinho, nos cobria com a flanela quente do mĆŖs de julho e a gente dormia os sonos justos de toda crianƧa.
Em outro ponto do mundo, no meu futuro e quando eu jĆ” era adulta, teve uma menina que tambĆ©m adorava brincar. Brincava muito, mas era constantemente interrompida pelo tio que nĆ£o estava para brincadeira. Ela tambĆ©m ficava com a avĆ³. Bastava a menina comeƧar a brincar e lĆ” ia o tio cortar os sonhos e o divertimento da menina. Ela sĆ³ tinha seis anos quando comeƧou a testemunhar na prĆ³pria carne tĆ£o tenra e nova a histĆ³ria de terror que ouvia dos livros, como se tivessem pulado as pĆ”ginas e ido morar ali com ela. Coitada daquela menina. Do lado dela, um monstro causando terror, pavor e silĆŖncio. “Se abrir a boca, o bicho papĆ£o te pega”. Mas jĆ” pegou, pensava a menina. Ainda assim, ela nĆ£o dizia nada.
O que serĆ” que vem acontecendo na nossa sociedade quando grupos de pessoas acreditam ser razoĆ”vel e aceitĆ”vel que uma crianƧa de dez anos tenha um filho? SĆ³ isso jĆ” Ć© escandaloso. Mas e quando essa crianƧa carrega o que achava que fosse dor de barriga, o que, de fato, era um feto fruto da violĆŖncia na sua forma mais repulsiva e abominĆ”vel de um tio? Quem sĆ£o esses indivĆduos que ignoram a barbaridade do crime cometido pelo parente da crianƧa para alterar o foco do problema? HĆ” um Ćŗnico criminoso nessa histĆ³ria e, atĆ© hoje, segunda-feira, ele estĆ” foragido. Se a energia e a determinaĆ§Ć£o dessas pessoas fossem usadas para capturar o criminoso, estuprador e pedĆ³filo que arrasou o bem estar de uma crianƧa, traumatizando uma vida para todo o seu futuro, talvez esses crimes acontecessem menos. NĆ£o hĆ” Deus que justifique isso. NĆ£o hĆ”. Nunca haverĆ”. Nunca! Eu, enquanto brincava de casinha, guardava minhas bonecas para dentro dos sacos de brinquedo ou caixas de presente no fim do dia. De lĆ” nĆ£o saĆam a nĆ£o ser no dia seguinte, quando eu acordava pronta para fazer o papel que me cabia: o de ser crianƧa. Aos dez anos, essa menina jĆ” viu de frente o lobo mau, o bicho papĆ£o, a bruxa, a raposa, o monstro. Eu achava que fosse o tio representaĆ§Ć£o nefasta mais que suficiente desse mal. Acontece que, pobre menina, quando voltar Ć vida, terĆ” que olhar nos olhos quem lhe desejou a morte. Ou ser mĆ£e aos dez anos atravĆ©s de um estupro Ć© vida que se celebre? Afinal, de quantos monstros Ć© feito o pesadelo de uma crianƧa? Sinto uma incalculĆ”vel vergonha de quem aponta o dedo para a crianƧa. Erram o alvo. Erram feio.
Bicho PapĆ£o