Bala

Por Nara Vidal

 

Não encoste nos outros, fique a dois metros de distância, não abrace e, por favor, não beije.
Quando menina, passavam pelas nossas ruas, homens _ nunca mulheres _ em cadeiras de rodas vendendo balas. Chegavam como avalanche e depois sumiam até a próxima vinda, meses depois. Aqueles homens deslizavam, miraculosamente, as rodas de ferro precárias de seus assentos entre calçadas esburacadas e ruas de paralelepípedos. Nunca vi nenhum deles se prender no chão da nossa rua velha. Minha tia-avó tinha medo daqueles homens e dizia ter ouvido falar que tinham doença contagiosa. Falava-se em lepra. Uma amiga me dizia que eram revoltados com a doença que tinham, e alguns lambiam as balas e em seguida embrulhavam para jogar dentro das casas das crianças.
Como a minha avó não me deixava ficar no portão enquanto a caravana de homens passava, eu ficava da janela seguindo o movimento. As balas eram colocadas em pacotes de plástico, grandes, pequenos. Pareciam lacrados, o que colocava por terra a teoria da minha amiga sobre o lambe-lambe.
Um dia, fui com a minha outra avó que não era índia, numa novena na nossa rua. Eu era a única criança entre as devotas de São Francisco e logo me foram ofertadas balas tipo Juquinha para aguentar o tranco das orações. Algumas balas eu guardei no bolso do short para chupar depois. Na casa da minha vó que não era católica, a índia, fui tomar meu banho e da peça de roupa, caíram as balinhas feito pérolas soltas quicando no chão de cimento duro e pobre do banheiro. A tia-avó me repreendeu. Me avisou que me levaria ao médico e à benzedeira. Durante semanas eu estive em observação para saber se estava ou não com lepra, como diziam. Tive febre, vômito, suava frio. Naturalmente, numa ansiedade imensurável para o corpo de uma menina de poucos anos, a pressão de uma doença iminente era muito para suportar serenamente.
Enquanto eu crescia, os cadeirantes começaram a sumir até o desaparecimento meu ou deles. Talvez eles nunca tenham existido. Não é aconselhável confiar em memórias tão apagadas e incomuns. As minhas amigas não devem mais ter o medo daquelas pessoas que se trancavam em casa e depois iam brincar na rua de novo. Se fechassem os olhos, o pior sumia.
Mas a maneira mais eficaz mesmo de evitar aquele contato era espalhando essas histórias, as mentiras e os medos nas crianças que iam crescer e continuar a espalhar histórias, mentiras e medos. Tudo na melhor das intenções, sempre diriam.
Não é muito diferente do que vemos no Brasil como país modelo de fracasso de implementação de políticas sociais. Gente pobre que se enxerga rica porque há sempre um mais miserável na esquina. Famílias inteiras que sacrificam o ínfimo salário para pagar escola, plano de saúde, num modelo repetitivo, melancólico, calado, sem reivindicar que o imposto deveria livrá-las desses gastos. Mas pagam duas vezes e viram clientes com exclusividades, atendimentos vips, no vício de quererem sempre deixar à margem a pobreza a partir do empobrecimento próprio ainda mais profundo.
Essas relações de desdém pelo outro sempre existiram, e a autoridade fundamentada em vantagem e favores é o osso que põe de pé o povo brasileiro. Mas curioso que a gente sempre rejeita ou tem implicância com quem nos faz pensar em nós mesmos. A tia, por exemplo, que me foi imensamente querida, fazia uma bala de coco deliciosa para vender. Mas não assim, nas ruas como uma forasteira: para casas de famílias, todas de bem, é claro.
Essa rejeição de um espelho insuportável demais para ser encarado alimenta fartamente as diferenças e gera contágio tão poderoso quanto o do vírus.
Não abrace, mantenha a distância e não beije. Cada um no seu lugar.

Tribuna

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