‘The Bad Batch’, ‘Locke & Key’ e ‘Monsieur Vieux Bois’
Oi, gente.
Os fãs de “Star Wars” podem reclamar de muita coisa que a Disney fez depois que comprou a Lucasfilm (“A ascensão Skywalker”, principalmente), mas o volume de bom material que tem chegado entre livros, quadrinhos, filmes e séries de TV quase compensa os tropeços – afinal, o que eles fizeram no final da terceira trilogia JAMAIS será perdoado. Entre os acertos, temos a animação “The Bad Batch”, que teve sua primeira temporada encerrada semana passada no Disney+.
Para começar, um dos acertos da produção criada por Dave Filloni é deixar toda a novela dos Skywalker de lado e apostar em histórias que aconteciam em paralelo à saga principal. Se “The Mandalorian” investiu em um personagem inédito, o desenho animado apresenta as aventuras do grupo de personagens que apareceu na sétima temporada de “Clone Wars”: a Força Clone 99 – ou “Os Mal-Feitos”, clones com mutações genéticas que são responsáveis por missões bem específicas para a República.
A história começa com Hunter, Wrecker, Crosshair, Tech e Echo em uma missão durante o golpe de Palpatine para derrubar a República e começar a ditadura do Império, quando a Ordem 66 imediatamente colocou todos os clones a serviço do novo Imperador. Os Mal-Feitos (todas as vozes de Dee Bradley Baker), entretanto, não são afetados pela programação secreta, exceto um deles, e cabe ao grupo decidir se seguirá seu próprio caminho na galáxia ou se ficará alinhado ao Império Galático. A decisão, ao final, é tomada quando passam a proteger a pequena Omega (Michelle Ang) das ambições imperiais.
Os 16 episódios da primeira temporada de “The Bad Batch” certamente deixaram felizes os fãs menos chatos de “SW”. A animação é uma evolução em relação a “Clone Wars”, ainda que mantenha o mesmo estilo; as referências a vários elementos da saga, os fan services e personagens já conhecidos estão lá; a trilha sonora é daquelas de deixar John Williams orgulhoso; os vilões são aqueles caras maus de verdade; e os Mal-Feitos, que talvez não fossem a escolha inicial da maioria dos fãs, se mostraram capazes de conquistar o público.
Quanto a Omega, é aquela coisa: ter sidekicks crianças acompanhando adultos em missões de vida ou morte sempre é arriscado. A chance de se tornarem pentelhinhos irritantes, daqueles que não obedecem a ninguém, se metem em tudo e atrapalham os planos, é grande, mas a garotinha de “The Bad Batch” – serve, principalmente, de “consciência” para o grupo.
Dentro da proposta de apresentar histórias periféricas no universo de “Star Wars”, “The Bad Batch” é bem sucedida por cumprir sua proposta de entregar boas aventuras, e pouco mais além disso.
Partindo para os quadrinhos, lemos os três primeiros volumes de “Locke & Key”, série criada por Joe Hill em 2008 e publicada lá fora pela editora IDW, tendo chegado por aqui pelo selo Geektopia, do Grupo Novo Século. Quem pensa em HQs logo imagina mais uma aventura com super-heróis, mas o que temos neste caso é a criação de uma excelente mitologia de terror. A história começa com o assassinato de Rendell Locke, um conselheiro infantil, por um de seus ex-alunos, o perturbado Sam Lesser, que por pouco não mata também a esposa e os filhos de Rendell – que havia orientado a esposa a levar a família para a mansão onde passou a infância e adolescência, localizada na cidade de Lovecraft, caso algo acontecesse a ele.
É a partir daí que a magia e o terror começam a ganhar corpo na trama, pois a Mansão Locke é cheia de mistérios, segredos e de chaves que acessam poderes inimagináveis. A mansão passa a ser a obsessão de Sam Lesser, mesmo na cadeia, e também é o elemento que pode desvendar o mistério de uma tragédia ocorrida décadas atrás na cidade, além de esconder um mal ancestral.
Os três primeiros volumes de “Locke & Key” (“Bem-vindo a Lovecraft”, “Jogos mentais” e “Coroa de sombras”) têm uma trama envolvente e bem amarrada, em que o terror, dramas adolescentes e adultos, mistérios e descobertas surpreendentes aparecem na medida certa, graças ao talento narrativo de Joe Hill e à arte do chileno Gabriel Rodriguez.
“Locke & Key” teve um total de 37 edições nos Estados Unidos, reunidas posteriormente em seis encadernados. A Geektopia lançou por aqui os quatro primeiros volumes, então vamos ficar na torcida para que os volumes cinco e seis não demorem a chegar.
Para terminar, voltamos a escrever sobre Rodolphe Töpffer, considerado o pioneiro das histórias em quadrinhos. Já havíamos escrito em junho passado sobre quatro das cinco histórias do artista suíço publicadas pela Sesi-SP Editora a partir do material encontrado no Brasil por André Caramuru Aubert, um dos descendentes de Töpffer. Faltava, porém, “Monsieur Vieux Bois”, que recebemos da editora pouco tempo depois.
A publicação tem uma trajetória peculiar. Ela foi a primeira história em quadrinhos criada por Rodolphe Töpffer, em 1827, mas não a primeira publicada – a honra coube a “Monsieur Jabot”, em 1833. “Monsieur Vieux Bois” ganhou publicação apenas em 1837, mas foi tão pirateada à época (inclusive no Brasil) que ele redesenhou o álbum para uma nova edição, lançada em 1839 e que é a versão a que o público brasileiro teve acesso graças à editora paulista.
Assim como as outras HQs, “Monsieur Vieux Bois” é um exemplo do talento de Rodolphe Töpffer para a ilustração, com traços finos, leves e que consegue dar ritmo à trama, ainda mais se pensarmos que ele sequer tinha ideia de que estava criando o que hoje chamamos de histórias em quadrinhos.
Quanto à trama, ela mostra o humor ácido, crítico e nonsense de Töpffer, em que acompanhamos as tentativas tresloucadas do protagonista para conquistar a mulher por quem é apaixonado, que aqui é chamada de “Objeto Amado”. É uma crítica do artista ao Romantismo que dominava o período, com suas histórias sobre amores impossíveis, mortes trágicas, tentativas de suicídio, disputa com rivais e o amor à natureza. São impagáveis as reviravoltas da história, como as tentativas de suicídio de Monsieur Vieux Bois, as duas cerimônias de casamento fracassadas e a obsessão com as trocas de roupa do protagonista, entre outras.
Rodolphe Töpffer, que era um calvinista genebrino, também aproveitou a história para criticar o catolicismo, presente nas figuras dos monges eremitas que perseguem o personagem principal em toda a trama, capazes de condená-lo à morte na fogueira, simbolizando a visão de atraso e intolerância que o suíço tinha em relação aos católicos.
Para quem acredita que histórias em quadrinhos também são uma expressão artística atemporal, as HQs de Rodolphe Töpffer são imperdíveis.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.
(Como avisa amigo é, lá vai o aviso: sigam a playlist da coluna no spotify ou Deezer; são mais de duas mil músicas para seu deleite auditivo)