Quarentena

Por Nara Vidal

Tem uma história para crianças que se chama “O tigre que veio para o chá”. A autora Judith Kerr narra a rotina da mãe e da menina Sofia, interrompida pela presença de um tigre que vem para o jantar. O bicho chega imponente, esvazia a geladeira, os armários, toma toda a cerveja e vai embora. Quando o pai da menina chega, elas contam do surpreendente animal que veio à casa. O homem escuta, convida mãe e filha para jantarem fora e a rotina se restabelece: o tigre não volta mais. Durante anos, contei para os meus filhos a aparentemente singela, mas perturbadora, história. Nunca me esqueci dela.

Quando ouvimos histórias bizarras, nossos espaços de reflexão tornam-se ilhas desertas onde especulamos e tentamos encontrar, escondida na areia, a chave para nos tirar daquela inquietação, uma conclusão. Seria o tigre a representação das pequeninas tragédias matrimoniais, seus dramas, a animosidade e estranhamento entre os pais da Sofia? Como pode alguém chegar, sentar-se à mesa sem ser convidado, comportar-se de maneira rude e egoísta, comer tudo, acabar com todos os biscoitos, sanduíches, chá como se fosse um animal feroz?

É bastante possível que tigres, sem distinção de gênero, comecem a habitar nossas casas. Na maioria das vezes nem mesmo conseguimos nos lembrar do dia que apareceram pela primeira vez. Há os que saem e voltam quando o jantar é servido, devoram tudo e no dia seguinte voltam com essa mesma fome e disciplina de horário.

Com o coronavírus, o tigre veio como de costume, mas precisou ficar. Passou a fazer compras, cuidar da casa, passar as roupas porque, não que ele tivesse prestado particular atenção, mas a mãe da Sofia trabalha duro. Ela escreve e depois de escrever, tenta fazer as pessoas lerem, os jornais publicarem, os editores apostarem, aquela coisa – a mãe da casa é uma pessoa de muita fé e otimismo.

A casa está tão calma. É um vírus inédito que traz silêncios novos. Presa com o tigre, tão lindo aquele tigre, a mãe de Sofia está entediada. Claramente o tigre também está, mas ele se ocupa de limpar os canteiros, consertar a tranca da janela, trocar lâmpadas. A casa da mãe de Sofia nunca esteve funcionando tão bem! Mas a mãe de Sofia continua insatisfeita. Ela então, convida o tigre para se sentar e escolher músicas para passarem o dia. Vamos chamar a playlist de “quarentena”. Começam a pensar em sons que ouviram porque o passado é sempre um excelente ponto de partida para qualquer perspectiva. Encontraram uma, duas, várias músicas que ouviram juntos quando se conheceram. No livro de Kerr ninguém sabe a origem daquele tigre, mas a mãe de Sofia acha que o conhece de algum lugar, talvez de outros carnavais, vai saber. De certo ele se tornou um tigre estranho naquele vai e vem diário, mas a porta sempre esteve destrancada. “Se lembra de ‘Mississipi”? O tigre perguntou. A mãe de Sofia não ouvia aquela música há uns dez, doze anos. O olhar tímido do tigre procurou o lava-louças para esvaziar. Mas já não havia nenhum copo lá dentro porque ele já tinha se ocupado daquilo. A casa, numa limpeza impecável. A mãe de Sofia ficou imóvel; tão quieta quanto um dia de quarentena. Ouvia com atenção aquela música que fez com que se lembrasse de onde, então, conhecia aquele tigre. A mãe de Sofia lhe deu a mão e eles começaram a dançar. Os rostos estavam colados e as respirações levemente descontroladas. Todo animal precisa de toque, seja a mãe de Sofia, seja o tigre. Juntos cada um com o seu pensamento, o tigre apurou seus sentidos e se lembrou do cheiro que só a mãe de Sofia tem. A mãe de Sofia pensou nas vezes que não reconheceu o tigre e sua voz. Seu toque parecia se acomodar perfeitamente naquele isolamento imposto. Eram obrigados a se olhar, a estarem juntos. Ele não podia mais dizer que detestava o que ela tinha se tornado ou que estava atrasado e não tinha tempo para conversa. Já não fazia sentido para ela sair de casa (fique em casa!) e sonhar com outros beijos e abraços ou uma vida nova na Lua onde alguém achasse bonito o que ela tinha se tornado.

Com a quarentena, teriam tempo de sobra para se preocuparem com cada conta de luz e gás e água, com cada compromisso adiado, com cada fim de mundo previsto nos noticiários. Sentiram uma trégua, um ar parado de quarentena. Desapontando o conselho de saúde, naquele momento houve um beijo entre a mãe de Sofia e o tigre. Ele viu, com o canto de olho a pilha de roupas para passar. Ela notou, ao abrir os olhos, que precisavam abastecer o estoque de vinho. Estavam sempre em fusos diferentes. Apesar disso, conseguiram construir a playlist juntos. Tocou a “quarentena” quase toda e ficaram em casa. Outro dia, li no Facebook que o resultado do vírus será um novo baby boom ou uma onda de divórcios. A música estava quase acabando. O que vai acontecer? Ainda é cedo para saber: é um vírus novo.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade pelo seu conteúdo é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.



Leia também