O pensamento pacificador do ex-militar Rafael Santos na luta contra a violĂȘncia
Militar em missÔes importantes, como a de pacificação da Maré, Rafael abandonou a carreira como sargento, graduou-se em direito e hoje intervém de outra forma, integrando o Coletivo Liberdade, pelos direitos da comunidade carceråria
NĂŁo era PietĂĄ. Era como se fosse. A imagem que Rafael Silva dos Santos guarda na memĂłria de seus 30 anos Ă© a de uma mĂŁe com o filho nos braços. A mulher com lĂĄgrimas nos olhos e o jovem com tiros na cabeça. Certamente, uma facção rival havia entrado na comunidade da MarĂ©, dominada anteriormente pelo Comando Vermelho, e efetuado os disparos. A viatura de Rafael, em operação pela pacificação do complexo de favelas, foi uma das primeiras a chegar e uma das primeiras a ouvir a revolta da mĂŁe. “Ela chorava com muito Ăłdio. E eu, entĂŁo, percebi como hĂĄ um tensionamento entre classes. Numa situação como aquela, tensa, nĂŁo pude falar nada. Fiquei de mĂŁos atadas. A comunidade se aglomerou em volta do corpo, e a gente precisou isolar a ĂĄrea. Todo mundo estava revoltado. Era uma comoção intestina. E o que pude fazer como militar foi isolar e tentar acalmar os Ăąnimos. Eu gostaria muito de chegar perto daquela mĂŁe e tentar confortĂĄ-la, mas nĂŁo pude. Queria que aquela mĂŁe me identificasse como alguĂ©m que sofre os mesmos problemas desse modelo de segurança pĂșblica violento, porque o militar tambĂ©m morre, vive uma escala de serviço absurda, principalmente os praças, numa situação muito cansativa. Eu nĂŁo pude chegar para aquela mĂŁe e falar que estamos juntos na luta.
Independentemente de o filho dela ter envolvimento com o trĂĄfico – e certamente tinha, nĂŁo quero romantizar -, era uma mĂŁe que sofria. E eu sentia que estĂĄvamos lutando entre nĂłs por interesses externos. Aquilo me impactou. Era uma mĂŁe, mais uma mĂŁe que chorava diante de um corpo. Poderia ser mĂŁe de um militar ou de um traficante”, conta. “Todos nĂłs vivemos na linha da violĂȘncia”, pontua o homem que, em 2014, ao retornar da dura missĂŁo em solo carioca, comunicou aos seus superiores seu desejo de sair da corporação. Ficou mais um ano. Em 27 de novembro de 2015, Rafael finalmente deixou para trĂĄs a carreira iniciada como sargento. Nunca mais vestiu a farda.
Armado de livros
A graduação em direito, Rafael havia começado em 2011, em GoiĂĄs. Transferiu para a UFJF pouco depois, mas precisou trancar em 2014, por conta das missĂ”es. HĂĄ dois anos, concluiu o curso com um estudo profundo sobre a segurança pĂșblica no paĂs, analisando, especificamente, a pacificação no Complexo da MarĂ©, espaço, sob sua Ăłtica, historicamente criminalizado pelo Estado, tais como os quilombos. Este ano, Rafael ingressou no mestrado, pesquisando a funcionalidade do complexo militar industrial. “Analiso na minha pesquisa que a indĂșstria bĂ©lica cumpre uma função econĂŽmica importante. Vejo o caso especĂfico dos Estados Unidos, que tem uma das economias mais pujantes e um setor bĂ©lico muito forte. Analiso as especificidades dessa mercadoria armamento, para demonstrar que diante desse cenĂĄrio em que o prĂłprio sistema tem uma indĂșstria bĂ©lica essencial para o metabolismo do capital, as lutas institucionais, como as da ONU, se tornam vias de negociação que jĂĄ nascem fadadas ao fracasso”, explica. “Passo o dia tentando conciliar as atividades da vida acadĂȘmica, da advocacia autĂŽnoma, que exerço, trabalhando em vara criminal e vara de famĂlia, da rotina pessoal (Ă© pai da pequena JĂșlia, de 6 anos, e noivo da estudante de enfermagem Lidiane),e da militĂąncia”, diz, referindo-se ao Coletivo Liberdade, a forma que encontrou para se manter intervindo. “Desde que saĂ do ExĂ©rcito, passei a atuar na militĂąncia, atĂ© que no inĂcio desse ano, eu e uma amiga da faculdade junto de outras pessoas nos organizamos. NĂŁo se trata de militĂąncia partidĂĄria, mas de um trabalho especĂfico para a população carcerĂĄria de Juiz de Fora e suas famĂlias. Hoje temos cinco advogados populares, assistente social, psicĂłlogos, enfermeiros, a maioria recĂ©m-formados, cheios de gĂĄs. Atendemos gratuitamente as demandas que nos trazem da Vara de ExecuçÔes Penais. E nosso principal objetivo Ă© buscar a auto-organização dessas pessoas. NĂŁo queremos fazer assistencialismo, mas promover a conscientização de classe nessas famĂlias, para que reconheçam que esse modelo de segurança pĂșblica violento as afeta e que o direito penal Ă© seletivo em sua aplicabilidade.” O grupo promove reuniĂ”es quinzenais com famĂlias no Centro de Direitos Humanos, no Vitorino Braga, e presta assessoria jurĂdica. Pela reduzida equipe do coletivo, os advogados populares oficiam, mas nĂŁo assumem causas por procuração, jĂĄ que precisariam selecionar os casos em que poderiam trabalhar, o que nĂŁo seria justo. Uns nĂŁo valem menos que outros.
Formado pela experiĂȘncia
O desejo era construir a independĂȘncia. Nascido em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, Rafael, filho mais velho de um casal formado por um funcionĂĄrio pĂșblico do IBGE e uma professora, ao completar o segundo grau, quis trabalhar. “O ExĂ©rcito Ă© uma oportunidade que atrai os jovens, porque Ă© um concurso pĂșblico que sĂł homens de 18 a 24 anos disputam, entĂŁo, a concorrĂȘncia nĂŁo Ă© a mesma (em relação a outros concursos). Eu nĂŁo queria fazer faculdade estando em casa, queria desonerar meus pais das despesas comigo”, diz. “Entrei no ExĂ©rcito aos 19 anos, pela Escola de Sargentos das Armas. Vim para Juiz de Fora, porque o primeiro ano do curso foi aqui, depois fui para TrĂȘs CoraçÔes (onde estĂĄ a escola). Depois de dois anos de internato, me formei sargento. Fiquei no exĂ©rcito de 2008 atĂ© final de 2015. Nesse perĂodo, participei de missĂŁo nos grandes eventos como a Copa das ConfederaçÔes, a Copa do Mundo e a mais tensa delas, a chamada pacificação no complexo de favelas da MarĂ©. Foi uma missĂŁo muito caracterĂstica desse modelo de segurança pĂșblica no Rio de Janeiro, do controle policial do cotidiano do pobre. Por ter sido num momento entre grandes eventos, entre a Copa e as OlimpĂadas, e por ser em uma comunidade cercada pelas linhas amarela, vermelha e Brasil, essa missĂŁo deixou claro que seus fins nĂŁo eram resguardar a população, mas garantir os interesses dos investidores dos eventos, ainda que para isso houvesse um controle violento do dia a dia dos moradores das favelas. Passei por troca de tiros e diversas outras situaçÔes e, naquele momento, vi que nĂŁo era nisso que eu acreditava. Sou de uma famĂlia de classe mĂ©dia baixa, e romper era difĂcil. Decidi que tomaria outra postura na vida. Estaria entrincheirado, sim, na questĂŁo da segurança pĂșblica, mas tentando mudar a realidade das pessoas que sĂŁo as mais afetadas por esse modelo violento”, afirma, recordando-se da rotina dura. “Por esse aspecto, sou grato ao ExĂ©rcito. Acordava cedo, ia dormir tarde, com atividade durante o dia inteiro, e sempre tendo que fazer alguma coisa. Essa disciplina levo comigo.” JĂĄ o arrependimento, nĂŁo. “Foi uma decisĂŁo eminentemente ideolĂłgica, de compreender que nĂŁo havia a possibilidade de permanecer ali sendo reto com meus princĂpios Ă©ticos, morais e ideolĂłgicos. Passei bastante aperto financeiro, agora começo a me estabilizar. Queria sair e fazer algo que valesse a pena, nĂŁo queria ser um burocrata, mas poder transformar a realidade.”
Indignado com as distorçÔes
A primeira vez que Rafael pegou em uma arma foi no ExĂ©rcito, ainda no curso de formação para se tornar sargento. “Quando a gente atira no estande de fuzil, nĂŁo tem, de imediato, a impressĂŁo sobre a que fim aquele armamento se destina. Atirar num alvo Ă© como um esporte. SĂł temos a noção real numa missĂŁo”, narra ele, que ao subir o morro da MarĂ© tomou contato nĂŁo apenas com o prĂłprio projeto, mas com uma realidade sobre a qual pouco sabia. “O que mais me marcou foi a situação de misĂ©ria que algumas comunidades dentro do complexo viviam. LĂĄ tem desde os miserĂĄveis atĂ© o cidadĂŁo de classe mĂ©dia. Alguns vivem numa situação extrema. E eu estava numa missĂŁo em que tinha munição para gastar Ă vontade. As Forças Armadas gastaram quase R$ 600 milhĂ”es sĂł naquele um ano e meio de operação, tendo problemas muito mais urgentes e essenciais que nĂŁo eram resolvidos e poderiam ser, por muito menos dinheiro. Outro caso que me impactou foi ver que toda aquela comunidade era cercada por placas acĂșsticas para impedir o avanço do som dos carros nas vias expressas. Aquelas placas custaram cerca de R$ 20 milhĂ”es para o municĂpio do Rio de Janeiro, mas dentro da comunidade havia pessoas em situação de misĂ©ria. Os governantes diziam que era preciso proteger a comunidade do som, mas era uma estratĂ©gia para esconder a favela. No final da minha graduação, fiz estudos e descobrimos que aquelas placas impactavam algumas poucas famĂlias, e a massa de 140 mil habitantes sequer sentia os efeitos”, aponta, lamentando a cruel criminalização da pobreza. “A violĂȘncia Ă© uma questĂŁo social e nĂŁo pode ser tratada de outra forma. Esse modelo de UPP Ă© muito caracterĂstico da frase do presidente Washington LuĂs (1926-1930), que dizia que ‘questĂŁo social no meu governo Ă© caso de polĂcia'”, associa, para logo defender a valorização dos direitos humanos. “EstĂĄ havendo um crescimento da população carcerĂĄria e um recrudescimento do sistema penal, das operaçÔes policiais ao judiciĂĄrio e, no geral, vemos a juventude pobre e negra atrĂĄs das grades, em grande medida por crimes relacionados ao trĂĄfico de drogas”, critica, certo de que a seletividade identificada em Juiz de Fora tambĂ©m prevalece em todo o paĂs.