ConheƧa Seu Ivo, um dos barbeiros mais antigos de JF
Aos 86 anos, 70 deles trabalhando como barbeiro, no mesmo endereƧo, o descendente de alemĆ£es guarda consigo a memĆ³ria de SĆ£o Pedro e do proletariado local
Sobre a bancada estĆ£o uma escova nova, folhas de papel, pano branco, caixa de isopor, canetas, frasco de Ć³leo lubrificante, lĆ”pis, caixa vazia, trĆŖs pequenas garrafas de refrigerante com Ć”gua dentro, duas latas de molho de tomate, garrafa transparente com lĆquido perfumado, escova velha, pomada para barba, vasilha para preparo de creme de barbear, pente, navalhete, faca velha, espanador, borrifador de Ć”gua azul, fotografias antigas, controle remoto, pente, cadeado e um alicate. Na parede frontal, estĆ£o escova vermelha, fotografia com o bisneto, papel com contas, chaveiro, escultura de Nossa Senhora da Aparecida, propaganda antiga, uma montagem com quatro fotos 3×4 em quatro tempos e duas fotos dos pais, um alvarĆ” de funcionamento, uma imagem de Cristo crucificado e um quadro com o valor do corte de cabelo: R$ 10. E a barba: R$ 10. TambĆ©m estĆ” um relĆ³gio, que Pedro Ivo Gerheim vĆŖ girar hĆ” 86 anos.
“Eu nĆ£o cansei atĆ© hoje”, diz o homem, conhecido pelo segundo nome. “Dia de domingo fico atĆ© meio-dia. Se tiver freguĆŖs eu trabalho, se nĆ£o tiver, espero. Tenho esse freezer aĆ e sempre vem um ou outro tomar uma cervejinha”, conta ele sobre o lugar onde passa a maior parte de seus dias desde 8 de maio de 1948. Um dos mais antigos barbeiros da cidade, seu Ivo atende os veteranos. “A meninada nova gosta muito de fazer risquinho (desenhos), mas eu mando fazer com o vizinho”, ri ele, cujo sobrinho Ć© o cliente mais antigo. “Comecei a trabalhar num dia, e ele nasceu no outro. Ele, toda a vida, cortou cabelo comigo”, orgulha-se, rodeado por objetos antigos, alguns atĆ© mais velhos que ele mesmo, como o armĆ”rio em cedro, que era da avĆ³ e soma mais de um sĆ©culo de histĆ³ria.
A mĆ”quina de barbear analĆ³gica ele preserva nos fundos do pequenino salĆ£o que ocupa o nĆŗmero 2.498 da Avenida Presidente Costa e Silva. No espaƧo, tambĆ©m guarda uma roda de bicicleta, vassoura, enxada, papĆ©is, pedaƧos de madeira e outras inutilidades, segundo o prĆ³prio Ivo. “JĆ” entraram aqui para roubar mais de 50 vezes. Uma vez levaram minha mĆ”quina, depois nĆ£o levaram mais”, conta, aos risos, o profissional que viu a tecnologia evoluir e otimizar seu tempo. “A mĆ”quina elĆ©trica, de primeira, tinha um motorzinho que rodava uma engrenagem. Depois veio uma que tinha uma lingueta de plĆ”stico que ajudava a cortar. Hoje Ć© por vibraĆ§Ć£o e tem tudo quanto Ć© pente. Para cortar cabelo melhorou muito”, diz, sem pensar em parar. “Enxergar, eu enxergo bem. Um problemazinho de saĆŗde eu tenho. Tomo remĆ©dio para a arritmia e um para nĆ£o deixar a prĆ³stata crescer. Minha pressĆ£o Ć© sempre 11/8. Trabalho sem Ć³culos.”
PĆ©s no chĆ£o
A data em que seu Ivo comeƧou a trabalhar como barbeiro estĆ” escrita Ć mĆ£o no verso de um quadro com a imagem de Santo AntĆ“nio, pendurado acima da porta que dĆ” acesso aos fundos do salĆ£o. “Meu padrinho era devoto de Santo AntĆ“nio. TambĆ©m sou devoto de SĆ£o Pedro. Nasci no dia de SĆ£o Pedro, moro em SĆ£o Pedro e me chamo Pedro”, pontua ele, que aos domingos vai Ć missa, contribui no ofertĆ³rio e tambĆ©m nos outros dias todos. “Todo mundo que passa aqui e vem me pedir, eu dou”, assegura ele, bisneto de alemĆ£es que se mudaram para Juiz de Fora em busca de vida melhor. Encontraram, no entanto, muito trabalho, num comprometimento que fizeram legado. O pai de Ivo, AntĆ“nio, era carroceiro. A mĆ£e, Maria, lavadeira. “Tirei o terceiro ano aqui em SĆ£o Pedro, e o quarto, fiz na cidade. Ia a pĆ©, atravessava o lote onde Ć© a universidade. Tinha um trilho ali que saĆa na Rua Padre CafĆ© ou na Serrinha (Dom Bosco). Ia descalƧo porque nĆ£o tinha chinelo. Punha um embornalzinho nas costas e descia. NĆ£o tinha merenda tambĆ©m nĆ£o. Tenho o diploma da escola atĆ© hoje”, orgulha-se, mostrando o documento dobrado e jĆ” desgastado pelo tempo. Ainda crianƧa, deixou as salas de aula. “Fui carregar almoƧo para a (Companhia FiaĆ§Ć£o e Tecelagem) Industrial Mineira. Fazia tudo a pĆ©. Quando parei, jĆ” tinha uns 14 anos e fui ajudar o papai na carroƧa. Minha mĆ£e nem sabia ler. Meu pai muito mal sabia escrever o nome. Naquela Ć©poca, nĆ£o tinha como estudar. Nem saber como entrĆ”vamos para colĆ©gio a gente sabia. NĆ£o tinha luz. Em SĆ£o Pedro comeƧou a ter luz em 1945. Em 1948, quando comecei a trabalhar, a gente pĆ“s o primeiro telefone, de manivela. Hoje ele estĆ” na casa da minha filha. SĆ³ tinha aquele telefone aqui. Tinha que ligar, rodar e pedir para discar o nĆŗmero. De lĆ” para cĆ” tinha que discar 91, e aqui era o 544. Para telefonar para fora, era preciso ir ao Centro. Naquele tempo, nĆ£o tinha farmĆ”cia, nada disso. Os comprimidos eram vendidos nas vendas. Eu mesmo tinha para vender. Eu me casei em 1954, e minha patroa jĆ” aplicava injeĆ§Ć£o. Depois eu aprendi tambĆ©m. Tenho muita qualidade na injeĆ§Ć£o, sem ser enfermeiro nem nada.”
Navalha nas peles
A bicicleta, um modelo simples, estĆ” parada do lado de fora do salĆ£o. Na frente, estĆ” uma caixa de papelĆ£o que seu Ivo faz de cesto. Para onde vai, monta no veĆculo de cor prata. Sempre foi assim. Carro, nunca teve. Nem o desejo de ter. O dinheiro, por sua vez, juntou trabalhando no ofĆcio que aprendeu aos 15 anos. Um dia, recolhendo o mato de um lote no Bairro Santa Terezinha, o pai de seu Ivo teve a ideia de pedir a um barbeiro conhecido seu, cujo salĆ£o ficava naquele bairro, que ensinasse o ofĆcio ao filho. “Comecei a ir todo dia de manhĆ£. Eu levava meu almoƧo e ficava o dia inteiro. Passei seis meses lĆ” aprendendo. Nesse tempo, o papai mandou fazer esses dois cĆ“modos aqui”, diz ele, referindo-se Ć casa onde estĆ” hĆ” sete dĆ©cadas seu negĆ³cio. “Foi aqui que comecei a aprender mesmo. Quando cheguei, nĆ£o sabia direito, mas aprendi a fazer barba bem e a afiar a navalha. GraƧas a Deus acabou a navalha! Naquele tempo tinham uns alemĆ£es que tinha umas barbas vermelhas que pareciam um arame. Era de amargar! Fiz a barba de todos eles”, ri o homem, que com o ofĆcio criou os cinco filhos. Sempre cobrando valores baixos, resultado de cĆ”lculos sensĆveis. “EstĆ” bom, porque num instante a pessoa faz R$ 10. O salĆ”rio mĆnimo nĆ£o chega a R$ 40 por dia. Eu ganho isso muito rĆ”pido, mas quem vem aqui nĆ£o. Eu jĆ” me aposentei”, explica ele. Era 1954 quando seu Ivo se casou com a prendada Catarina ZĆ©lia e foi morar no terreno dos sogros, tambĆ©m no SĆ£o Pedro, e onde criava porcos, galinhas, num clima tĆpico de vida rural. Ele ainda mantĆ©m-se no local, hoje rodeado por prĆ©dios e estabelecimentos comerciais e sem a esposa, falecida em 2002. Os filhos jĆ” lhe deram 12 netos, que tambĆ©m jĆ” lhe deram quatro bisnetos. Com orgulho, o barbeiro conta a profissĆ£o das geraƧƵes que o sucederam. O homem de olhos muito azuis e cabelos muito brancos soube calƧar a estrada.
Registros na caixa e na cabeƧa
A casa era de tijolos aparentes, numa paisagem repleta de mata e chĆ£o de terra batida. Eram quatro irmĆ£os Gerheim. Resta a seu Ivo apenas uma irmĆ£, com quem ele toma cafĆ© pela manhĆ£ e Ć tarde. HĆ” alguns anos perdeu o irmĆ£o que fazia vizinhanƧa com sua barbearia. “Ele era sapateiro aqui do lado. A gente tocava o botequim do outro lado. Quando eu estava trabalhando, ele atendia, quando eu ficava Ć toa, eu atendia. Em 1984, eu me aposentei. Mas continuei tocando os dois”, diz, a alguns passos do freezer que preserva dentro do salĆ£o e no qual conserva bebidas e alimentos que comercializa. Numa caixa de papelĆ£o, guardada no armĆ”rio defronte do freezer, estĆ£o as fotos da infĆ¢ncia, o ingresso da primeira partida no EstĆ”dio Municipal MĆ”rio Heleno, a carteira de habilitaĆ§Ć£o de carroceiro do pai, um convite da formatura em medicina de um antigo cliente e um interessante perfil dele escrito por um estudante de comunicaĆ§Ć£o. TambĆ©m estĆ” a lembranƧa da primeira vez que pisou no MaracanĆ£ para ver o amado Flamengo. “Estava cheio de gente. Naquele tempo tinha geral. E nĆ£o vi briga, nĆ£o. Hoje assisto na televisĆ£o. Mas nĆ£o perco o sono para ver, nĆ£o. Dia de domingo Ć© que vejo”, conta o idoso, ele mesmo a memĆ³ria de toda uma regiĆ£o. “Era uma colĆ“nia aqui, cada famĆlia tinha trĆŖs alqueires de terra. E cada casal tinha oito, dez filhos. Tive muitos fregueses. Tinha sĆ”bado ou vĆ©spera de festa que eu trabalhava atĆ© meia-noite. Tudo era mais difĆcil, tinha a mĆ”quina de mĆ£o, e demorava bem mais. Comecei a usar mĆ”quina elĆ©trica em 1954”, diz ele, mostrando o recibo do equipamento, escrito Ć mĆ£o em caneta azul. “Recebi do Sr. Pedro Ivo Gerheim a importĆ¢ncia de CR$ 5.400,00 proveniente da venda que lhe fiz de 1 Cadeira Brasil nĀŗ 2, 1 mĆ”quina de cortar cabelo elĆ©trica marca Aesculap, e 1 frente para salĆ£o com espelho biso no centro com as respectivas guarniƧƵes. Por ser verdade, selo e assino. Juiz de Fora, 11 de maio de 1953. Geraldo Gomes”, apresenta o recibo com ares de carta.