Em janeiro é aniversário da minha filha. Ela que é o último fio visível que, através de mim, conecta com a minha mãe e sua ausência tão persistente e sólida, a história de quatro mulheres. Depois de quase treze anos sem chamar a mãe, o que resulta numa ridícula e patética orfandade adulta, ainda reservo o choro cada vez menos frequente para o banho onde me dou o direito de, em inquestionável delírio, chamar, em voz muito baixa, por aquele som de três letras anasalado repetido pelos meus filhos.
Eu tinha doze anos quando minha avó morreu e algum tempo depois, uma amiga perguntou nessas conversas tolas: o que você salvaria se sua casa pegasse fogo? Cheguei a pensar em cartas de amor por medo de que não me fossem mais escritas, quando, aos doze anos, ainda não tinha recebido nenhuma. Mas decidi pelos chinelos de pano que a vó fazia com seus dedos cada vez mais tortos. A vó molhava a linha da costura com a saliva. Por vezes, espetava com a agulha o dedo que sangrava. E algo que não era visto a olho nu, mas hoje é nítido: enquanto ela costurava, ela sentia medo de não ter dinheiro. Tudo isso lá, dentro daquele plástico onde está o par de chinelos de pano que ela fez.
Da partilha mais significativa da minha mãe, a mais difícil não é escolher quem fica com o quê, mas a decisão de se desfazer de coisas que eram importantes para ela. Afinal, quem consegue gostar de tantos bordados, caminhos de mesa, objetos, antiguidades? Os livros, crônicas, contos, ensaios e fotografias estão em boas mãos. Entre outras coisas, trouxe para mim duas blusas. Foram usadas por ela e as guardei embrulhadas em papel de pão. É raro abrir aqueles pacotes. Desenrola-se um mundo intenso, melancólico, dolorido, de um amor insuportável. Moram dentro das blusas alguns dos seus fios de cabelo que a doença não levou. Mora também o seu cheiro cada vez mais escasso, e é preciso fechar os olhos por mais tempo para encontrar pingos do perfume dela espalhado feito um labirinto por toda a blusa. Mas ela está lá como se viva em alguns pontos que me pegam de surpresa como pontos de luz e fogo que se manifestam subitamente nas ideias.
E alguém precisa arrumar o guarda-roupa.
Ano novo geralmente chega com essas ideias de organização. Fora com o que é inútil, com o que não deu certo, com o que nos fez mal, com o nocivo. Abrimos espaço para a esperança, para a renovação, para a procura da alegria, para um respiro bom e profundo. Há também espaço para o que nos fez bem, caixas de memórias e afeto.
Exatamente como as eleições presidenciais no Brasil este ano. Fora com o que não vale nada e já provou isso repetidas vezes. Fora com o que maltratou os brasileiros de forma profunda e cortante. Fora com o que foi o pior presidente que o Brasil elegeu. Cuidado: segundas e terceiras chances vão ficando escassas com o tempo. Identificar uma oportunidade de alegria é crucial.
O que você levaria se a casa pegasse fogo? Sua história? Seus planos? Seu futuro?
Ficamos mais pesados até percebermos que não é possível carregar nada que se salve. O futuro não precisa de resgate porque está intacto e protegido: ele não chega nunca.
Lembram-se de quando falavam que o Brasil é o país do futuro? Era mentira.
Um feliz 22 e boas eleições!
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