Quem julga vĂȘ a si mesmo
Em setembro, a presidente da Casa do Caminho completarĂĄ 95 anos. Para comemorar a data, Isabel SalomĂŁo de Campos manifestou o desejo de reunir os meninos que passaram pelo Lar do Caminho, entidade que ela fundou na dĂ©cada de 80, retirando mais de 500 crianças e adolescentes das ruas. Todos em situação de vulnerabilidade social. AlĂ©m de oferecer a cada um atendimento integral, escola de qualidade e oportunidade, ela conseguiu promover o fortalecimento dos vĂnculos familiares, um tecido social antes esgarçado em função das limitaçÔes impostas pela falta de acesso aos direitos bĂĄsicos. Atualmente, o trabalho do Lar do Caminho Ă© focado nos serviços de convivĂȘncia comunitĂĄria e no atendimento Ă primeira infĂąncia.
Muitos desses garotos que cresceram no Lar do Caminho conquistaram uma profissĂŁo e hoje tĂȘm a sua prĂłpria famĂlia. E nessa mobilização para a realização desse reencontro tem sido emocionante testemunhar tudo que eles se tornaram. Mais bonito ainda Ă© ver a alegria de cada um diante da expectativa desse almoço. Os convidados falam sobre o passado e a gratidĂŁo que sentem pelo que receberam das mĂŁos de dona Isabel. Relembram os natais, as festas de aniversĂĄrio, as brincadeiras na quadra de esportes da instituição, a experiĂȘncia de uma infĂąncia feliz.
Entre tantas histĂłrias, havia uma mais difĂcil. Soube que um dos garotos tinha sido detido por envolvimento com CD pirata hĂĄ alguns anos. Contei para dona Isabel sobre isso e perguntei se deverĂamos convidĂĄ-lo para o encontro.
– Claro que sim. NĂłs nĂŁo podemos descartar ninguĂ©m, ela respondeu.
Fiquei muito envergonhada com o equĂvoco do meu julgamento. Na hora, pensei: que tipo de pessoa eu sou ao me achar melhor do que outras? Enviei o convite para ele logo em seguida. A resposta veio em poucos minutos.
– Nossa, que alegria! Sou muito grato a dona Isabel por tudo que recebi nesta vida. Recomeçar nunca Ă© tarde.
Li a resposta para dona Isabel. Ela, entĂŁo, pediu que enviasse um recado a ele.
– Diga a ele que sempre vivi para entender e ajudar.
– Isso alegra o meu coração, respondeu o rapaz, completando em seguida:
– Semana que vem, me formo na Faculdade de Engenharia, contou. Gostaria de levar meu convite para dona Isabel, pois eu nunca esqueço da minha raiz e de onde eu vim, afirmou enviando pelo celular uma foto que guardava em seus arquivos. Na imagem, ele aparecia com 5 anos de idade ao lado da fundadora do Lar. Na sequĂȘncia, ele enviou outra foto. Desta vez, recente, tirada na companhia de seus colegas de universidade.
Fiquei realmente impressionada com a minha pequenez. Aquela conversa me fez refletir muito sobre a vida. Olhei para dona Isabel e pensei em tudo que ela fez por todas as pessoas: brancos, negros, ricos, pobres, ateus, catĂłlicos, espĂritas, evangĂ©licos, protestantes, homens, mulheres, crianças, idosos. Detentos, indivĂduos em situação de rua… Nunca ouvi dela qualquer tipo de julgamento sobre quem quer que fosse.
No mesmo dia, li uma entrevista concedida pelo pai de uma das vĂtimas do sequestro do ĂŽnibus no Rio. Ele havia acabado de consolar a mĂŁe do sequestrador morto por um sniper. Sobre o gesto, o homem disse ao repĂłrter:
– Como ser humano, fui ajudar, porque, naquele momento, a dor Ă© dos dois lados. Eu nĂŁo tenho poder de julgar.
Aquele foi um dia para eu não esquecer. Ao julgarmos o outro, revelamos muito sobre nós mesmos. E quando o nosso olhar estå contaminado por preconceitos, a gente até consegue ver, mas tem uma dificuldade enorme de enxergar.