A vizinha do 15ยบ andar
Lidar com o tema da violรชncia domรฉstica รฉ como estar o tempo todo virada para o espelho. A cada histรณria ouvida, a gente se coloca no lugar da vรญtima, de seus filhos e de seus familiares. Nas รบltimas semanas, eu e a jornalista Sandra Zanella nos debruรงamos sobre os casos ocorridos na cidade e na regiรฃo para tentar fazer uma radiografia sobre a Lei Maria da Penha, que completa 12 anos, e sobre as mudanรงas de cultura que tรชm levado as mulheres a quebrarem o silรชncio que acoberta os agressores.
Falar de violรชncia domรฉstica รฉ, essencialmente, tocar no machismo que coisifica o sexo feminino e transforma esposas e companheiras em alvo de homens que nรฃo aprenderam a respeitar o outro e nem a si mesmos. Mas o que a gente aprende de imediato รฉ que nรฃo hรก caminhos simples para lidar com a complexidade de fatores que levam a mulher a tolerar por anos ou dรฉcadas a violรชncia sofrida, na maioria das vezes, dentro de casa. Uma pesquisa divulgada na รบltima sexta-feira aponta que, das 12.340 pessoas atendidas nos รบltimos cinco anos pela Casa da Mulher em Juiz de Fora, quase 40% relatam ter dependรชncia financeira de seus agressores e 33,33% admitem sofrer dependรชncia psicolรณgica. Hรก ainda a dependรชncia afetiva, a preocupaรงรฃo em manter a famรญlia para preservar os filhos de uma separaรงรฃo e uma imensidรฃo de conflitos que adiam uma denรบncia.
Responsรกvel pelo trabalho, a advogada especializada em Direito da Mulher e mestre em Psicologia na รกrea de percepรงรฃo social, Rose Franรงa tambรฉm aponta um dado inรฉdito: mais da metade das mulheres atendidas pela Casa da Mulher em Juiz de Fora sรฃo brancas e tรชm idades entre 18 e 40 anos. De fato, as quatro vรญtimas de feminicรญdio que deixaram filhos e famรญlias como mostra a reportagem especial que comeรงa hoje sรฃo brancas e se encaixam no perfil de idade apontado por Rose.
Mergulhar no drama delas me fez rememorar meus 8 anos de idade, quando eu e meus pais morรกvamos no 14ยบ andar do edifรญcio Josรฉ Iscold, localizado na Rua Santo Antรดnio. Um andar acima, um “cidadรฃo de bem”, como muitos homens eram chamados naquela รฉpoca, espancava sua esposa cotidianamente. Me lembro dos gritos de socorro dela e atรฉ do som das surras que vinham do 15ยบ andar. Aqueles episรณdios me chocavam tanto, mas ninguรฉm no prรฉdio ousava falar sobre eles. Atรฉ dentro da minha casa o assunto era comentado com discriรงรฃo. Um dia, cheguei a tapar os ouvidos para tentar nรฃo ouvir o desespero daquela mulher considerada idosa para a รฉpoca.
Por vรกrias vezes, me deparei com o agressor da minha vizinha no elevador. Discreto, barrigudo, de bigode, cabelos brancos, olhos pretos esbugalhados e uma carteira debaixo do braรงo. Do alto da sua covardia, ele desejava um bom dia. Sentia tanta raiva dele que atรฉ hoje consigo lembrar de seu rosto… e do dela tambรฉm. Que mulher triste, amedrontada, submissa ร quele sujeito que ainda era cumprimentado por todos.
Como me dรณi hoje saber que ninguรฉm fez nada por aquela mulher. Nunca mais tive notรญcias dela. Como eu gostaria de falar para ela que, dรฉcadas depois, seus gritos estรฃo, finalmente, sendo ouvidos.