Os JĂșlios e a pena de morte
Todas as noites, meu filho de 4 anos busca um livro no seu quarto e me entrega: “MamĂŁe, leia pra mim”. AĂ pego os dedinhos dele, passo sobre as letras, ensinando o som das palavras para que ele, em breve, consiga juntĂĄ-las e comece a emocionante aventura pela lĂngua portuguesa. Um dia, neste exercĂcio de ensinar e aprender, ele me disse: “VocĂȘ me adora, nĂ©?” Fiquei feliz ao ver o quanto ele se sentia seguro. Aquela frase fez o meu pensamento voar longe e pousar em JĂșlio, um menino que eu conheci na rua, em uma reportagem que fiz na dĂ©cada de 1990, quando ele tinha apenas 7 anos. O meu pequeno personagem passava os dias no sinal da Rua EspĂrito Santo, brincando entre os carros, pedindo dinheiro. No primeiro contato com ele, soube que tinha uma mĂŁe internada na antiga Casa de SaĂșde AragĂŁo Villar, hospital psiquiĂĄtrico fechado ano passado por falta de condiçÔes dignas.
Em busca da histĂłria de JĂșlio, descobri que, apĂłs a internação da mĂŁe, ele ficou jogado por vĂĄrias casas que nĂŁo o queriam. Era intruso. O menino branco de inesquecĂveis olhos azuis tinha fome de afeto, mas os adultos que se viram obrigados a ficar com ele nĂŁo tinham comida, nem amor para oferecer. EntĂŁo, ele foi adotado pela rua, ficou ausente da escola, fragilizando os Ășnicos laços de esperança. Tempos mais tarde, passou a cometer pequenos furtos, conheceu a cola. Aos 11 anos, foi pego na rua pela Kombi do Comissariado de Menores e jogado dentro da Casa de SaĂșde Esperança, onde, misturado a adultos com transtorno mental, passaria por uma “desintoxicação”. Na Ă©poca, fizemos nova reportagem sobre o equĂvoco de se “tratar” crianças naquele ambiente. Ali encontrei JĂșlio diferente. O garoto que sonhava em ser jogador de futebol para comprar uma casa e poder tirar a mĂŁe do hospital psiquiĂĄtrico onde ela se tornou paciente asilar, estava acuado. De volta Ă rua, queria se impor. Revoltado, passou a acreditar que nĂŁo poderia ser algo melhor. Assim, chegou aos 14 anos e, ao pegar em arma pela primeira vez, o jovem infrator nasceu para o Estado. Ao ganhar o status de “criminoso”, tornou-se chaga social. Vi JĂșlio de novo no Ceresp. Preso aos 18 anos, carregava a morte em seu olhar. Queria se vingar da sociedade que o expulsou por nĂŁo haver espaço para alguĂ©m como ele. Acabou assassinado dois anos depois.
A curta vida de JĂșlio foi uma tragĂ©dia anunciada. Todos falhamos com ele. O Estado, que nĂŁo garantiu que crescesse em condiçÔes dignas, os programas sociais que nĂŁo foram capazes de corrigir sua rota, a escola que abriu mĂŁo do aluno problema, e eu que nĂŁo consegui fazer o Poder PĂșblico perceber suas falhas com este JĂșlio e todos os outros que diariamente morrem e matam diante de nossos olhos. SĂŁo os “menores” que “devemos levar para casa” no repetido discurso de Ăłdio dos adultos que querem cortar o mal com o mal, sem entender nada sobre o cuidado com a raiz.
Em tempos de discussĂŁo e aprovação de redução da maioridade penal de 18 anos para 16, caminharemos mais rĂĄpido para o encarceramento dos JĂșlios. Vingança nĂŁo Ă© justiça, muito menos reparação. Se nĂŁo zelarmos pela infĂąncia, encarcerar a adolescĂȘncia sĂł aplacarĂĄ nossa sede de punição. O problema continuarĂĄ a existir em forma de exclusĂŁo, mas os “di menor” estarĂŁo aĂ como bode expiatĂłrio para a falta de polĂticas pĂșblicas que faz da adolescĂȘncia muito mais vĂtima do que autora da violĂȘncia. Pior do que isso Ă© ver o Brasil caminhando a passos largos para a pena de morte, quando o Estado, com o nosso consentimento, dirĂĄ para a sociedade: eu mato para ensinar que nĂŁo se deve matar.