Jogando uma mão de baralho na casa dos vizinhos lá de baixo, ocorre lá pelas tantas, por mérito de não me recordo quem, a palavra “estupefato”. Surgem algumas ponderações relacionadas ao vocábulo, a jogatina segue seu curso, tendo por vitoriosa a dupla de quase sempre, mas o “estupefato” me acompanha para casa e por todo o fim de semana. Pois não encontramos, entre os coringas e os ases, uma definição que nos agradasse a todos, aquele sinônimo preciso que traduzisse à perfeição o sentido do referido termo.
Consulto o míni Aurélio. “Estupefato”, lá está escrito, é adjetivo que significa “pasmado, atônito”. Acho débil a designação, com todo respeito ao finado Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, então recorro à etimologia da palavra. Na falta de um dicionário etimológico, vou ao Google, que me explica que “estupefato” vem do latim “stupefactus” e está relacionada ao verbo “entorpecer”. Muito elucidativo, mas não é a aplicação que procuro. Em busca desse sentido que me escapa, passo a me perguntar: o que me deixa estupefato?
A derradeira luz do sol dourando as flores da bananeira no quintal às seis da tarde, por certo. A visão da Serra do Mar desde a janela do carro toda vez que passo ao largo de Petrópolis rumo ao Rio de Janeiro. Uma certa fotografia de Ferdinando Scianna que emoldura Monica Bellucci na janela de um casarão italiano, circa 1991, absolutamente estupefaciente. A visão da “Guernica” de Picasso, reduzindo a gente a micróbio em pé ali no Museu Reina Sofia, uau!
Fernanda Montenegro naqueles imorríveis segundos em que encara a câmera ao final do filme “Ainda estou aqui” me deixou absolutamente estupefato. Gabriel Barbosa demolindo o Monumental de Lima aos 46 do segundo tempo. O livro “Brancura”, de Jon Fosse, que acabei de ler. Chego a considerar a trama do assassinato de um presidente recém-eleito, seu vice e um ministro da Suprema Corte como motivo de estupefação, mas recuo: nada que esse bando de punguistas de quinta categoria, tarados por torturadores, me deixa “pasmado, atônito”.
Antes um conto de Dalton Trevisan. Um poema de Bukowski. Outro de Leminski. Um haicai de Millôr. Tom Waits cantando “I hope that I don’t fall in love with you”. Cássia Eller botando o Cine-Theatro Central de joelhos. Uma onça que rosna à noite na boca da mata. A bruxa de boca flamejante que levita a um palmo do chão na praça do Quintas das Avenidas quando ninguém está olhando. A beleza que jaz no ato de criar mundos apenas enfileirando palavras.