ConheƧa Ravell: drag queen que cantou o hino nacional na Rainbow Fest

Na coluna 'Sem lenƧo, sem documento' desta semana, saiba mais sobre a trajetĆ³ria da drag queen Ravell, que participou de reality da HBO, Ć© cidadĆ£ benemĆ©rita de Juiz de Fora e teve um AVC aos 34 anos

Por Elisabetta Mazocoli

ConheƧa Ravell: drag queen que cantou o hino nacional na Rainbow Fest
(Foto: Arquivo Pessoal)

Wagner Vaccari tem 37 anos, Ć© um homem negro, magro, com tatuagens pelo corpo e que usa pequenas argolas prateadas como brinco. Tinha acabado de sair da academia quando conversamos, e estava lĆ” para dar aula de danƧa. Mas tudo isso importa bem pouco quando se torna Ravell, a drag queen que jĆ” interpreta hĆ” sete anos. “O Wagner e a Ravell sĆ£o pessoas totalmente diferentes. A forma de conversar, de olhar, como Ravell, Ć© totalmente outra. Adoro quando as pessoas falam que nĆ£o conseguem nem me identificar com o Wagner desmontado”, conta quem habita esses dois corpos.

Ɖ atravĆ©s desse personagem que ele encontrou liberdade para se expressar, e que tambĆ©m passou a viver coisas completamente novas. No espaƧo de um ano, foram vĆ”rias “primeiras vezes”: a primeira drag queen a se tornar cidadĆ£ benemĆ©rita de Juiz de Fora, a primeira drag queen a cantar o hino nacional em um evento LGBTQIAPN+ e, em breve, a atuar no primeiro musical da Broadway a ser adaptado em Juiz de Fora.Ā 

Essa histĆ³ria comeƧou hĆ” mais de 20 anos, quando Wagner ainda era pequeno. “Eu aprendi que gostava de danƧar com ‘Ɖ o Tchan’. JĆ” fui representante de turma, e em tudo quanto era evento, colocava para ter danƧa e coreografia. Comecei a dar aula de danƧa em uma academia com 16 anos”, relembra. Tudo que aprendeu, como explica, foi sozinho e se virando, em uma Ć©poca em que aprender coreografias das mĆŗsicas mais famosas era bem mais difĆ­cil que atualmente.

Em Juiz de Fora, era bailarino na banda Soma, atĆ© que, com a falta de um dos cantores, pediu para tentar interpretar as mĆŗsicas que jĆ” conhecia de cor. “Depois disso, nunca mais dancei lĆ””, conta. Foi por volta dos 20 anos, quando foi com a famĆ­lia para GoiĆ¢nia, no entanto, que se apaixonou pela arte drag.

Apesar de Ravell cantar e danƧar, coisas que jĆ” fazia antes, entrar nesse universo drag mudou tudo para ele. “Acho que eu usei a Ravell como escudo, uma arma para que eu pudesse expressar tudo que eu estava sentindo com mais liberdade”, revela. Essa trajetĆ³ria comeƧou quando estava ajudando um amigo a se montar, e percebeu que era algo que tambĆ©m tinha vontade de fazer.

No comeƧo, era BeyoncĆ© Ravell, porque fazia covers da cantora norte-americana, mas com o passar dos anos foi sentindo a necessidade de se desvincular dela para expandir suas oportunidades de trabalho. No total, sĆ£o 17 anos sendo drag queen. “Todas as formas de transmitir emoƧƵes que tenho Ć© atravĆ©s da Ravell, e ela me traz todas as emoƧƵes tambĆ©m. Tudo que eu jĆ” passei atĆ© hoje nesse sentido foi atravĆ©s dela, vestida de Ravell, com o corpo da Ravell. Ɖ uma abertura de caminhos”, conta.

TambĆ©m pela Ravell, o artista foi representar Minas Gerais em um reality da HBO que tinha Pabllo Vittar como apresentador, uma de suas grandes inspiraƧƵes. “Aprendi coisas sobre canto, performance e palco com profissionais que estĆ£o trabalhando com estrelas do Brasil inteiro. SaĆ­ com uma bagagem enorme, para que hoje eu possa mostrar meu trabalho ainda melhor”, relembra. Estando entre pessoas que compartilham da mesma paixĆ£o e vontade, tambĆ©m foi possĆ­vel ampliar a visĆ£o das mudanƧas que estavam acontecendo em sua vida.

“Nunca passei por nenhum tipo de homofobia frente a frente, talvez sĆ³ por trĆ”s ou velada. Mas a Ravell abriu muito espaƧo para mim, e eu percebo que, com o tempo, estamos ganhando mais espaƧo com as drags que aparecem na televisĆ£o. (…) Na minha Ć©poca, nĆ£o tinha uma drag queen preta que me representasse no palco. Hoje, eu sou essa drag queen que representa e canta, para quem vier depois de mim e quem jĆ” veio”, diz.

AVC aos 34 anos

Toda essa jornada chegou bem perto de acabar quando, aos 34 anos, Wagner sofreu um AVC. Naquele tempo, Ravell estava fazendo uma quantidade enorme de shows, que chegaram a ser cinco em trĆŖs dias em SĆ£o Paulo. “Fiquei dois dias em coma. Na Ć©poca, eu nĆ£o conseguia falar. Fiquei um ano e meio em tratamento para conseguir voltar a andar”, relembra. No momento em que teve o problema de saĆŗde, estava bem perto de um hospital, o que possibilitou o tratamento de emergĆŖncia rĆ”pido e ajudou que sua vida fosse salva. “Foi um ano de recuperaĆ§Ć£o diĆ”ria. Quando eu olhava as pessoas da minha Ć”rea fazendo o trabalho delas, enquanto eu estava na cama sem poder, aquilo me dava vontade de morrer. Mas eu nĆ£o podia, eu tinha que melhorar”, conta.

Aos poucos, passou da cadeira de rodas para o andador, do andador para a muleta, e da muleta para retomar os prĆ³prios passos. Fazia fonoaudiologia e fisioterapia diariamente, e contou com uma vaquinha on-line para custear o seu tratamento. “Vivo de cantar agora, e jĆ” vivia naquela Ć©poca. Se nĆ£o fizesse isso, ia fazer o quĆŖ?”, relembra. Apesar de difĆ­cil, a recuperaĆ§Ć£o plena aconteceu, apĆ³s ter que se afastar de toda a vida que conhecia. “Fiquei com muito medo. Mas tive mais fĆ©. Muita gente ao meu redor me ajudou, me fez crescer nesse momento e nĆ£o me deixou desistir. Deus me deu a oportunidade de estar aqui de volta, e minha forma de retribuir isso Ć© mostrando o que eu sei e onde posso chegar levando o nome da minha cidade”, afirma. Logo que pode, Wagner retornou aos palcos, que foram e continuam sendo a sua prioridade. Os prĆŖmios e as primeiras vezes ajudaram que sentisse que estava no caminho certo.

Drag Queen Ravel Lana Luz
(Foto: Lana Luz)

Ravell mais forte que antes

A parte mais difĆ­cil de voltar, depois do AVC, foi o canto. E logo a que ele queria mais, por ser algo tĆ£o real seu: “Eu me expresso muito melhor cantando. Consigo transmitir toda a emoĆ§Ć£o que estou sentindo naquela letra, mĆŗsica, canĆ§Ć£o. Isso Ć© o que faz sentido para mim”, diz. Poder cantar o hino, em 2024, foi algo que tocou tambĆ©m nesse desejo que teve e que pode continuar.Cantar o hino nĆ£o Ć© uma coisa fĆ”cil, e nĆ£o Ć© pela letra ou pela melodia, mas pela autenticidade e carga que traz. VocĆŖ representa uma naĆ§Ć£o quando canta. Eu me preparei muito para isso, porque Ć© uma emoĆ§Ć£o diferente. Mulher, foi a primeira vez que segurei o microfone com duas mĆ£os, e estava fazendo isso porque eu estava tremendo muito”, conta.

Apesar dos desafios, tambĆ©m Ć© no canto que sempre se sente mais de verdade. “Eu sinto, hoje, que a minha fala nĆ£o Ć© igual era antes. ƀs vezes perco a fala, gaguejo em horas que nĆ£o gaguejava antes. Mas quando eu canto, Ć© igual. Eu me sinto atĆ© mais forte que antes”, revela. O que vĆŖ de mais valioso no Wagner, e que leva para Ravell com toda garra, Ć© essa forƧa que se multiplica quando Ć© preciso, e que faz um sĆ³ virar muitos. “O que mais fez diferenƧa na minha vida foi essa vontade de nĆ£o parar. Se vocĆŖ me perguntar onde quero chegar, nĆ£o vou saber. Mas eu sei que eu posso chegar onde eu quiser”, diz.

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli Ć© uma repĆ³rter formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pĆ³s-graduanda em Escrita e CriaĆ§Ć£o pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Escreve a coluna "Sem lenƧo, sem documento", que conta a histĆ³ria de artistas, artesĆ£os e pessoas que trabalham com cultura em Juiz de Fora, mas que nem sempre sĆ£o conhecidos pelo grande pĆŗblico. TambĆ©m escreve matĆ©rias de cidade, educaĆ§Ć£o, saĆŗde, cultura e diversos outros temas. Ɖ autora do livro-reportagem "Do lado de fora: dez perfis de mulheres anĆ“nimas", escrito como Trabalho de ConclusĆ£o de Curso, e se interessa por jornalismo literĆ”rio. No tempo livre, escreve e lĆŖ literatura, se interessa por produƧƵes audiovisuais, viaja, cuida de gatos e aprende lĆ­nguas. [email protected] LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/elisabetta-mazocoli/

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