Avanços e desafios da reforma psiquiátrica em Juiz de Fora
Tribuna revisita memória de pessoas que passaram por desinstitucionalização e traz olhar de médicos que batalharam por um cuidado mais humanizado
“Eu fui internada no São Marcos. O que é muito ruim, porque aquilo lá parecia um depósito de animais, sabe? Para maltratar animais. E o São Domingos não era muito diferente não.” O relato é de uma mulher, ex-interna de hospitais psiquiátricos em Juiz de Fora. A fala foi retirada da dissertação de mestrado da psicóloga Thaís Silva Acácio, feita para o Programa de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.
“Depois que eu saí da contenção eu consegui roupa limpa. Roupa da rouparia. Eu usei roupa do hospital, graças à dona Aparecida (funcionária). Fiquei um mês internada e sem roupa. Sem peça íntima, sem roupa, sem absorvente, sem sabonete, sem shampoo, sem pasta de dente, nada. Sem nada.” Estes são apenas dois dos inúmeros depoimentos de usuários egressos de hospitais psiquiátricos na cidade, que expõem as condições às quais eram submetidos.
Juiz de Fora possui, atualmente, 270 egressos vivendo em Serviços de Residências Terapêuticas (SRT). São 28 casas que abrigam de quatro a dez pessoas, conforme informações da Secretaria de Saúde do Município. Esses moradores, em sua grande maioria, passaram boa parte da vida nos hospitais psiquiátricos da região, em uma época em que eram considerados crônicos, ou seja, eram internados sem perspectiva de alta médica.
A ideia dos manicômios como ambientes hostis e “reservatório” de pessoas consideradas “loucas” é fresca no imaginário popular. Afinal, a determinação para o fechamento de manicômios e hospícios é recente e foi assinada em 2001 como a Lei da Reforma Psiquiátrica. O texto, que demorou 12 anos para ser aprovado, foi sancionado no dia 6 de abril pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso e representou um divisor de águas no tratamento de brasileiros que sofrem com distúrbios, doenças e transtornos mentais.
Neste sábado (6), a Reforma Psiquiátrica completa 23 anos, e a Tribuna revisita a memória de pessoas que passaram pela desinstitucionalização do tratamento psiquiátrico e traz o olhar dos médicos que batalham por um cuidado mais humanizado. Além disso, é abordado como está o tratamento de saúde mental atualmente no município, que conta com atuação dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e a disponibilidade de leitos clínicos.
Hospital Colônia
A história da hospitalização psiquiátrica no Brasil começa no reinado de Dom Pedro II. O primeiro hospital voltado para o cuidado de pacientes mentais recebeu o nome do então imperador e foi fundado no Rio de Janeiro em 1852. Ele era conhecido como “Palácio dos loucos” e foi fechado apenas em 2021. Atualmente pertence à Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Antes da construção desse hospício, a questão dos doentes mentais era tratada como segurança pública, pela polícia. Os loucos chegaram a ser abrigados nos porões da Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro”,
conta o médico psiquiatra e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) André Stroppa.
Conforme André, com a construção do Hospício Dom Pedro II se dá por definitivo a entrada da figura do médico na atenção aos pacientes mentais. “O conhecimento tecnológico e o acesso a determinados meios eram muito escassos na época. As terapias e o tratamento proposto estão longe do que é feito hoje em dia, incapazes de ressocializar ou tratar de fato os pacientes. Na época, essa era uma tentativa dos profissionais de melhorar a qualidade de vida daquela população. Às vezes, a gente demoniza determinados períodos, mas sem entender a questão histórica deles.”
Como não havia medicamentos, a forma encontrada para controlar os pacientes mais agitados era trancá-los em quartos fortes e amarrá-los em camisas de força. Com o passar do tempo, o número de internos no hospício ficou muito grande, afinal as pessoas eram mandadas para lá sem perspectiva de um dia deixarem a unidade. Foi então que, no início da República, o departamento de saúde optou pela construção dos hospitais colônia.”O de Barbacena foi um exemplo, fundado no início do século XX, era um dos maiores do país. Os pacientes chegavam de trem, mas a população foi ficando alta e criando um ambiente desfavorável, nada terapêutico”, afirma Stroppa.
A história dos internos no Hospital Colônia em Barbacena foi abordada pela jornalista Daniela Arbex em uma série publicada pela Tribuna de Minas em 2011. “Na cidade do Holocausto brasileiro, mais de 60 mil pessoas perderam a vida no Hospital Colônia, sendo 1.853 corpos vendidos para 17 Faculdades de Medicina até o início dos anos 1980, um comércio que incluía ainda a negociação de peças anatômicas, como fígado e coração, além de esqueletos. As milhares de vítimas travestidas de pacientes psiquiátricos, já que mais de 70% dos internados não sofria de doença mental, sucumbiram de fome, frio, diarréia, pneumonia, maus-tratos, abandono, tortura”, o trecho foi retirado da reportagem que dá início à série: Holocausto brasileiro: 50 anos sem punição.
Juiz de Fora, junto com Barbacena e Belo Horizonte, estava no popularmente chamado “corredor da loucura”, onde se concentrava expressiva maioria dos leitos psiquiátricos do país. A cidade teve sete hospitais psiquiátricos no passado, foram eles: Clínica São Domingos, Clínica São Domingos filial, Casa de Saúde Esperança, Hospital Aragão Vilar, Clínica Serro Azul convênio, Clínica Pinho Masini e Hospital São Marcos, totalizando 1.792 leitos.
Em nome da razão
As condições do Colônia foram expostas após a visita do psiquiatria italiano Franco Basaglia, que chegou a comparar a instituição a um campo de concentração nazista. Em 1979, o documentário “Em nome da razão”, do cineasta Helvécio Ratton, mostrou o cotidiano dos pacientes e também contribuiu para que as condições desumanas às quais eram submetidos passassem a ser fortemente discutidas pela comunidade médica da época.
O psiquiatra Uriel Heckert lembra do dia em que o filme foi exibido e como o retrato das circunstâncias vividas em Barbacena mobilizou os profissionais e os estudantes no período. “Foi um grande passo para a Reforma Psiquiátrica, o filme mostrou que, em nome da razão – porque não era em nome da crueldade, era em nome da razão – estava-se fazendo loucura. Uma loucura maior do que a própria loucura.”
A partir daí, o conceito de instituição total para o tratamento mental passou a ser revisto. “O que amadureceu foi a ideia de tratar o paciente mental de uma outra maneira que não em instituições totais, mas em instituições abertas, democráticas, onde ele pudesse ter voz, onde a família pudesse estar presente e interagisse no tratamento.”
Nessa discussão, Juiz de Fora foi pioneira. Em 1984 organizou-se na cidade uma comissão interinstitucional de saúde mental para discutir estratégias para o tratamento psiquiátrico. “Participaram a Prefeitura de Juiz de Fora, o Instituto de Previdência Social, o Palácio da Saúde, a Secretaria Estadual de Saúde e a UFJF. Essas instituições se reuniram para começar a discutir a Reforma Psiquiátrica em Juiz de Fora. Foi uma reunião pioneira, tendo em vista que o Ministério da Saúde só começou a falar de reforma em 1990.”
Residências Terapêuticas
Depois de 14 anos da Lei da Reforma, em 2015, Juiz de Fora fechou o último hospital psiquiátrico da cidade, a Casa de Saúde Esperança, localizada no Bairro Vila Ideal. Na época, 97 pacientes psiquiátricos, sendo 80 homens e 17 mulheres, foram transferidos para o Hospital Ana Nery, no Bairro Grama, e passaram por um período transitório até chegarem às residências terapêuticas. Hoje em dia são 28 casas que abrigam 270 egressos.
O Serviço de Residências Terapêuticas (SRT) é uma modalidade assistencial substitutiva da internação psiquiátrica prolongada. Elas não são diferentes de casas comuns, e os moradores possuem toda a liberdade para sair, fazer atividades, realizar tratamentos e depois retornarem para a residência. Conforme o secretário de Saúde de Juiz de Fora, Ivan Chebli, nas casas os moradores participam de atividades de lazer, cultura, oficinas e também contam com o apoio das equipes do Grupo Espírita de Assistência aos Enfermos, o Gedae, responsável pela administração desses espaços.
“Um grande desafio que temos atualmente é o envelhecimento dessa população. O processo de desospitalização já dura quase uma década. Muitos já eram idosos, ou estavam na meia idade e hoje são idosos, demandando mais cuidados. Além disso, grande parte não tem vínculos familiares ou sociais, que foram perdidos durante o período de internação”, afirma Chebli. Ele ainda aponta que as residências são medidas momentâneas, já que atualmente, salvo raros casos, nenhuma pessoa é encaminhada para morar em uma dessas casas coletivas.
Tratamento psiquiátrico no município
A desinstitucionalização não significou o abandono dos pacientes mentais pela saúde pública, pelo contrário. O princípio da reforma é que esse tratamento seja feito por diversas frentes, multidisciplinares e com participação ativa de terceiros, seja a sociedade ou a família.
O atendimento começa nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e pode chegar à internação clínica, em casos mais graves. Como explica o secretário, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são direcionados a pessoas que precisam de um maior acompanhamento. Atualmente, existem cinco Caps em Juiz de Fora, são eles: Caps II Leste, Caps II HU/CAS “Liberdade”, Caps Infância e Juventude II, Caps III Casa Viva e o Caps Álcool e Drogas III. O número de usuários atendidos por esses equipamentos gira em torno de cinco mil ao ano.
Conforme Chebli, está prevista, para Juiz de Fora, a implantação de três novos Caps até 2025. “Pelo cronograma do plano de ação regional, deverão ser instalados mais um Caps Álcool e Drogas III, funcionando 24 horas na Zona Norte, um Caps Infância e Juventude, funcionando de 7h às 19h, também na Zona Norte, e um Caps Leste, para atender a região que será instalado no Bairro Vitorino Braga.” Além disso, serão implantadas duas novas casas de acolhimentos, uma para crianças e outra para adultos. “São espaços para usuários que demandam mais cuidados, não necessariamente internação.” Chebli afirma que os trâmites para instalação do Caps Álcool e Drogas III na Zona Norte já estão avançados, com perspectiva de inauguração ainda este ano.
O atendimento no Caps, como explica a gerente do Departamento de Saúde Mental de Juiz de Fora, Graziela Lonardoni de Paula, envolve um projeto terapêutico singular para cada pessoa, que diz respeito ao tratamento dentro e fora do centro. “Se a pessoa está em um momento de crise, naturalmente ela vai precisar estar mais intensivamente em contato com a rede de saúde para um tratamento intensivo. Ela pode ir, três, quatro, cinco vezes na semana ao Caps. Mas isso vai se modificando no decorrer da vida da pessoa. Ela pode ter alta e voltar a se tratar em uma UBS, fazer um tratamento pontual em algum especialista.”
Além das UBS e do Caps, há a discussão para implantação de ambulatórios voltados a psicoterapias para a comunidade. Conforme Ivan Chebli, seriam ambulatórios constituídos por psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais para atender parte da população, cujo quadro não é tão grave para ser encaminhada ao Caps, mas que a UBS não conseguiria garantir uma continuidade do cuidado.
Internação e redução de leitos
O grande ponto da Reforma Psiquiátrica foi o afastamento do paciente de saúde mental de um tratamento unicamente hospitalizado. No entanto, ainda existem casos no qual a pessoa precisa passar por internação, de forma pontual e em situações mais graves. Conforme explica o psiquiatra André Stroppa, a internação de pacientes de saúde mental em leitos de hospitais clínicos se mostrou eficiente ao longo dos últimos anos, desde o fechamento dos manicômios. “O paciente psiquiátrico passa a ser tratado igual ao paciente clínico. A questão de indigência, abandono e superlotação fica no passado. Se você precisa internar um paciente, vai interná-lo em um hospital. Fazer a administração de medicamentos e terapias e, assim que ele apresenta uma melhora, dar alta.”
Em Juiz de Fora, o Hospital Regional João Penido é responsável por essa recepção. A unidade, até pouco tempo, possuía 19 leitos voltados para usuários de saúde mental, mas recentemente teve o quantitativo reduzido para dez. A Tribuna questionou essa redução e, em nota, a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) afirmou que, diante da necessidade de maior oferta de vagas para os casos de arboviroses – dengue, zika e chikungunya -, precisou reduzir o número de leitos destinados a pacientes em sofrimento mental. “Em um momento posterior, será acordado com o Município a viabilidade da manutenção desses leitos para saúde mental, após nova avaliação de seu papel dentro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) municipal.”