Pessoas LGBTQIAPN+ superam adversidades e se tornam referĂȘncias profissionais
Tribuna entrevistou cinco pessoas que atuam em diferentes ramos de atividade e dĂŁo fĂŽlego Ă luta por reconhecimento
De acordo com uma pesquisa realizada em 2022 pela consultoria global Great Place To Work (GPTW) com enfoque em diversidade e inclusĂŁo, apenas 10% dos funcionĂĄrios brasileiros se autodeclaram parte da comunidade LGBTQIAPN+, e no recorte dos cargos de liderança, apenas 8%. Nas organizaçÔes, de acordo com a Center For Talent Innovation, 33% afirmaram que nĂŁo contratariam pessoas da comunidade para cargos de chefia e liderança. A falta de oportunidade de emprego igualitĂĄrio e de respeito Ă s relaçÔes amorosas dentro do ambiente de trabalho Ă© mais um dos desafios enfrentados por essa comunidade no Brasil, e a situação tambĂ©m Ă© acompanhada de problemas como assĂ©dio moral, violĂȘncias verbais e mesmo desemprego. No entanto, com os avanços no debate de temas de inclusĂŁo nos Ășltimos anos, Ă© possĂvel ver um aumento de pessoas LGBTQIAPN+ em espaços de liderança, um aumento de vagas que priorizam a diversidade e a presença de representantes que servem de referĂȘncia para outras pessoas. A Tribuna entrevistou cinco pessoas com atuaçÔes diferentes, em diversos ramos, mas que dĂŁo fĂŽlego a essa luta.
David Sender, médico
David escolheu ser mĂ©dico psiquiatra aos 12 anos, apĂłs uma experiĂȘncia pessoal de depressĂŁo. Anos depois, ele ainda queria compreender como a mente humana Ă© capaz de criar sensaçÔes como, por exemplo, o vazio no peito, a felicidade e a tristeza, e quais eram os fundamentos psĂquicos e biolĂłgicos por trĂĄs desses fenĂŽmenos. Com o tempo, no entanto, a curiosidade deu vez Ă vontade de proteção: “Transformei-me num defensor do propĂłsito de evitar que outros passassem pelo que experimentei: anos de angĂșstia solitĂĄria, enfrentando um inimigo invisĂvel, simplesmente porque eu nĂŁo me encaixava no estereĂłtipo de uma pessoa doente”. Ele jĂĄ trabalha no ramo hĂĄ 11 anos e narra que, desde que começou, a “ausĂȘncia de representatividade era flagrante”. Para alĂ©m da falta de exemplo, ele explica que, nos anos de estudo da psicologia mĂ©dica na faculdade, esse setor vital e altamente especĂfico jamais recebeu a devida atenção.
Seu principal desafio, como narra, era se integrar e conseguir encontrar quem entendesse suas angĂșstias pessoais. “Nos anos 2000, ser autĂȘntico era, por si sĂł, um risco de ser visto negativamente”, diz. Apesar de entender que como homem branco, cisgĂȘnero, proveniente de uma famĂlia com recursos, ele nĂŁo sofreria a mesma discriminação, esse processo deixou muitas marcas. Hoje, ele tambĂ©m tenta fazer o possĂvel para transformar feridas em formas de ajudar outras pessoas. “A dor de crescer como gay em uma comunidade judaica nos anos 90 me concedeu uma experiĂȘncia singular que facilitou uma conexĂŁo profunda com o sofrimento alheio. Acredito que ser um psiquiatra extremamente comprometido em acolher os outros em condiçÔes tĂŁo dolorosas, por meio de uma abordagem honesta, afetuosa e sem julgamentos, me proporcionou a oportunidade de estabelecer relaçÔes com pacientes que sentiam a necessidade de fazer o mesmo comigo”, diz.
Para ele, ainda, foi possĂvel sobreviver dessa forma e encontrar o seu lugar no mercado desenvolvendo como estratĂ©gia a entrega de um trabalho excepcional e sempre buscando se destacar, a fim de nĂŁo permitir que sua sexualidade se sobrepusesse ao profissionalismo. “Algo que, em princĂpio, jamais deveria ter sido uma preocupação, concorda?”, questiona. Ao pensar que pode ser referĂȘncia para outros, David se emociona: “NĂŁo foi fĂĄcil me tornar quem sou, e nĂŁo estou me referindo somente ao aspecto profissional, mas principalmente ao pessoal. Carreguei sempre comigo a ideia de que uma parte de mim representava uma desvantagem que poderia comprometer o todo. Levei tempo atĂ© alcançar minha criança interior e reconhecer que todas as suas caracterĂsticas eram bem-vindas, especialmente a sua sexualidade”.
Gabriela Talha, advogada
Para Gabriela Talha, que hoje Ă© advogada criminalista e especialista em execução penal, a melhor parte de seu trabalho Ă© ser instrumento para garantir os direitos das pessoas. “NĂŁo importa se Ă© acusada, vĂtima ou investigada, ela tem direito de ter um profissional pronto para defender e garantir os direitos dela. Esse olhar sensĂvel Ă s necessidades das pessoas Ă© que me atrai”, conta. Foi justamente na faculdade de direito, em 2016, que ela começou a se entender como uma mulher que gosta de outras mulheres. Apesar de nĂŁo ter tido referĂȘncias de muitos profissionais jurĂdicos lĂĄ, a comunidade acadĂȘmica e professores sensĂveis Ă pauta dos direitos LGBTQIAPN+ fizeram com que ela se sentisse mais Ă vontade.
No entanto, ela nĂŁo deixava de pensar na ausĂȘncia de pessoas como ela nos lugares que queria ocupar. “Eu pensava: como vou ser quem eu sou, dentro desse cargo, dessa instituição, se nĂŁo tem ninguĂ©m lĂĄ como eu? O compromisso das instituiçÔes com a questĂŁo da diversidade Ă© algo bem recente, e a gente tem muito a avançar e discutir”, diz. Seu maior medo, neste momento, foi nĂŁo ser aceita, sofrer violĂȘncias e ter que enfrentar as agressĂ”es diĂĄrias. Mas o processo de entender a prĂłpria sexualidade foi natural, atĂ© mesmo por ter dois amigos prĂłximos que viveram esse momento junto com ela. “Expor isso para o mundo para alĂ©m da minha bolha, para o ambiente profissional e os familiares, foi um baita processo. E a realidade Ă© que a ‘saĂda do armĂĄrio’ nĂŁo acontece sĂł uma vez, Ă© em cada local novo, em cada amizade nova”, diz. Ela conta, ainda, que chegou a namorar escondido de sua famĂlia e que o seu pai faleceu sem saber de sua orientação sexual.
Ela explica que, ao contrĂĄrio da realidade de muitas pessoas LGBTQIAPN+, quando contou para a sua famĂlia e amigos, foi acolhida. A partir desse momento, Gabriela tambĂ©m entendeu que ser quem ela era tambĂ©m poderia ser uma forma de lutar por mais direitos para a comunidade. “Eu contei pra minha famĂlia em um mĂȘs, e no mĂȘs seguinte jĂĄ estava participando de uma live com a temĂĄtica LGBT. Um tempinho depois eu jĂĄ estava fazendo parte de um grupo de trabalho que construiu o Plano Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos LGBTs e, depois, virei presidente da ComissĂŁo de Diversidade Sexual e de GĂȘnero da OAB”, relembra. Todos esses espaços foram ocupados por ela, com 25 anos, mesmo em uma ĂĄrea na qual ela entende ainda haver um grande conservadorismo. E sua presença Ă© simbĂłlica para mudar isso: “Ă uma sensação Ămpar. Estou ocupando esses espaços como uma mulher preta, jovem, lĂ©sbica. Poder levar as discussĂ”es pra dentro das instituiçÔes Ă© algo de que a gente precisa”.
Tallia Sobral, professora e vereadora
Tallia Sobral, desde a campanha para vereadora que fez, em 2018, se declarava bissexual e uma representante que tinha como um dos seu principais ideais lutar pelos direitos LGBTs. Em 2020, ela foi eleita pelo PSOL e abriu portas para mais pessoas como ela, uma mulher bissexual, capoeirista, musicista e professora. Mas nada disso veio de forma fĂĄcil para ela: “Sempre fui LGBT e vivendo a vida no geral, passando por todas as questĂ”es de invisibilidade, de dificuldade, de questionamento. Ă constante o questionamento se vocĂȘ estĂĄ apta, se vocĂȘ Ă© boa o suficiente ou nĂŁo. As violĂȘncias que vocĂȘ tem que engolir pra chegar onde estĂĄ”. SĂŁo cobranças desmedidas, ataques violentos em redes sociais e ainda um processo interno que gerava receios inclusive quanto a encontrar emprego.
Ela jĂĄ havia tentado a vereança em 2012, mas ainda sem levantar esta bandeira como sua. TambĂ©m nos locais de trabalho nĂŁo falava sobre seus relacionamentos ou publicava fotos que mostrassem namoros, por exemplo. “Nos trabalhos em que estava hĂĄ mais tempo, as pessoas vĂŁo criando laços, contando sobre a famĂlia, namoros e filhos. Nessas conversas em tom de brincadeira, fofoca, risada, eu ficava mais quieta. Me assumir foi um ato polĂtico tambĂ©m”, afirma. E estar fazendo polĂtica e querer mudar o que gera esse silenciamento Ă© uma conquista para ela. “Ă um orgulho grande a gente estar ocupando esse lugar hoje, na CĂąmara. As LGBTs estĂŁo na cidade, vivem a cidade nas suas profissĂ”es e perspectivas que hoje estĂŁo sendo representadas em suas pautas”, esclarece, com alegria.
Sua vida na polĂtica juiz-forana começou quando ela se envolveu com o diretĂłrio acadĂȘmico da faculdade de educação fĂsica e foi se intensificando nos anos seguintes, principalmente quando começou a trabalhar como professora e percebeu que muitas coisas estavam funcionando de maneira errada. Tallia sempre fala em “a gente” quando fala das conquistas dela, inclusive das que mais se orgulha: “A gente conseguiu aprovar o projeto de lei da empregabilidade trans”. Isso acontece porque, como deixa claro, nĂŁo se trata de uma construção individual. “Individualmente, por mim, queria estar na escola, dando aula, com as crianças ou tocando mĂșsica. Mas Ă© um lugar importante aqui, neste momento. Uma lei nĂŁo garante tudo. Na verdade, garante muito pouco. Mas ter uma lei que permite que vocĂȘ construa em cima dela, Ă© muito significativo”, diz.
Wesley Pontes, professor
Wesley Pontes trabalha como professor desde 2011, tendo o seu prĂłprio cursinho de redação para o Enem e outros vestibulares desde 2014. Para ele, a boa relação que tem com os alunos Ă© “sorte”, e a aceitação dentro da instituição de ensino em que trabalha tambĂ©m. Isso porque, ao seu redor, sabe que hĂĄ um clima de conservadorismo e de perseguição contra professores que toquem em temas sociais importantes, e que hĂĄ diversos colegas que tambĂ©m fazem parte da comunidade que sofreram represĂĄlias. “Eu cheguei atĂ© a passar por uma aluna, ano passado, que se recusou a assistir Ă minha aula porque eu tocava nesses temas. Uma geração saiu da escola e do ensino mĂ©dio sem ter tido acesso a uma discussĂŁo muito importante de tĂłpicos que vĂŁo estar presentes em suas vidas adultas”, afirma.
Para ele, esse cenĂĄrio polĂtico e o clima de repressĂŁo que tem crescido nos Ășltimos anos gerou grandes danos, inclusive tornando difĂcil trabalhar alguns temas, porque “hĂĄ uma perseguição ideolĂłgica contra alguns professores”. Ele exemplifica que, quando eles tocam em assuntos que fazem parte de questĂ”es sociais e de cidadania, sĂŁo vistos como partidĂĄrios. “Principalmente na gestĂŁo do Governo federal anterior, a gente tinha que se policiar muito porque parte da sociedade nĂŁo entendia que alguns temas que eram levantados careciam de debates por serem problemas sociais, e nĂŁo por serem uma forma de doutrinação”, explica. E ver a troca de ideias reais entre professores e alunos, alĂ©m de poder ajudar a construir um mundo melhor, sĂŁo as partes de que mais gosta em sua profissĂŁo.
Quando começou sua faculdade, em 2007, embora tenha sido uma Ă©poca com muitos avanços, nĂŁo havia uma sĂ©rie de discussĂ”es, principalmente de forma institucionalizada, como existe hoje. “Inclusive no prĂłprio currĂculo escolar nĂŁo havia nenhuma preocupação sobre o assunto, o que Ă© algo bem mais recente. Foi uma Ă©poca em que o assunto nĂŁo era nem terceirizado, era totalmente invisibilizado, pelo menos no meio acadĂȘmico de que eu fiz parte”, diz. Para ele, poder mudar isso para as prĂłximas geraçÔes Ă© dar algo que nunca teve e que fez falta: “Acho interessante que os jovens possam ver, hoje, que a sua sexualidade, a sua expressĂŁo de gĂȘnero e as suas particularidades individuais nĂŁo vĂŁo determinar atĂ© onde eles vĂŁo chegar. NĂŁo vĂŁo delimitar para que alcancem seus sonhos. Ă muito interessante, sabe? Servir de inspiração e fornecer aquilo que nĂŁo tive em minha vida”.
Fernanda Aleixo, policial civil
Fernanda Aleixo conta que, antes de sair de casa, todos os dias, precisa se preparar: “Todo dia que saio, as pessoas olham, comentam e debocham. Mas jĂĄ estou em um lugar mais leve. O mundo ainda nĂŁo sabe lidar bem com as diferenças, e uma figura como eu⊠Eu nĂŁo preciso falar nada. Eu passando na rua, vai haver um comentĂĄrio, um olhar, uma cutucada de braço. Eu tenho que ter essa serenidade porque, Ă s vezes, Ă© sĂł uma curiosidade, um olhar de ‘Eu nunca vi algo parecido’. Mas Ă s vezes Ă© um olhar maldoso, um comentĂĄrio alto, um olhar que vocĂȘ percebe que a pessoa gostaria de te tirar de onde vocĂȘ estĂĄ”. Para ela, travesti e investigadora da PolĂcia Civil, existir chama a atenção. Ă por isso que, alĂ©m de se preparar, tambĂ©m inicia a rotina pensando que “amanhĂŁ Ă© um novo dia”.
Seu trabalho envolve intimaçÔes, ordens de serviço e atendimento presencial, chegando a atender de 20 a 50 pessoas por dia na delegacia, fazendo intimaçÔes na cidade inteira. No dia anterior Ă entrevista, ela contou que estava em um flagrante de violĂȘncia domĂ©stica, jĂĄ que atualmente trabalha na Delegacia da Mulher. Para ela, esse se tornou um trabalho gratificante, mesmo apesar de todas as dificuldades que se impĂ”em. “O que eu mais gosto no meu trabalho Ă© conseguir provar algo. Quando alguma comunicação nossa consegue prender alguĂ©m, gerar um mandado de busca e apreensĂŁo ou cessar uma violĂȘncia. Fazer com que a justiça aja”, diz. Ela afirma, ainda, que a relação com o pĂșblico costuma ser tranquila. “Ăs vezes, me chamam no masculino. Mas Ă© comum, eu nĂŁo sou uma travesti feminina, estou no processo inicial. E poucas vezes sinto que Ă© uma provocação ou uma maledicĂȘncia, geralmente Ă© um desconhecimento”, diz.
Fernanda Ă© muitas coisas: tambĂ©m Ă© formada em artes cĂȘnicas, dĂĄ aula de teatro no instituto Amargen e estĂĄ estudando ciĂȘncias humanas. Mas, em sua vida, entender quem era foi difĂcil. “JĂĄ tinha dez anos de policial e fazia terapia, tentando me entender… Eu ‘me saquei’ em 2018, mas ainda tinha algumas dĂșvidas. Ă muita informação. Foram 30 anos vivendo de uma forma, mas ainda faltava algo. Naquele ano, fiz uma peça com o grupo de teatro ‘OAndardeBaixo’, e na peça eu era uma travesti. Quando me vi nas fotos, naquele personagem, conversando com as pessoas, me dei conta de que era isso. Era esse clique que faltava”, relembra. Seu processo, como conta, foi aos poucos, e foi passando por uma sutil mudança na forma pela qual se apresentava no trabalho. “Um dia lembro de falar com uma amiga: ‘serĂĄ que um dia vou ter coragem de trabalhar com as roupas e acessĂłrios que quero?’. E ela respondeu: ‘se depender de mim, com certeza. Vai no seu caminho e no seu tempo'”. Agora, ela tambĂ©m quer ser vista como quem Ă© em todos os lugares, e espera ser acompanhada cada vez mais por diversidade, com pessoas que mostrem eficiĂȘncia e honestidade no que fazem. “Espero que daqui a uns anos sejamos vistas em todos os lugares. Talvez se eu estivesse travesti, lĂĄ atrĂĄs, talvez eu nĂŁo tivesse conseguido entrar. Eu nĂŁo sei. Mas desde entĂŁo, fui convidada para participar de lives da PolĂcia e tambĂ©m para panfletar na parada LGBT de Minas Gerais”, diz.