Ellen Rodrigues, professora e pesquisadora, fala sobre a escalada da violĂȘncia em Juiz de Fora
De acordo com organizadora do livro “A escalada da violĂȘncia em Juiz de Fora: desenvolvimento, urbanização e violĂȘncia, do ImpĂ©rio Ă s primeiras dĂ©cadas do sĂ©culo XXI” diz que vĂtimas da violĂȘncia em Juiz de Fora seguem o padrĂŁo nacional
A ausĂȘncia de planejamento urbano que levasse em conta as vulnerabilidades sociais existentes e o perfil seletivo das polĂticas pĂșblicas historicamente praticadas em Juiz de Fora sĂŁo pontos-chave do livro “A escalada da violĂȘncia em Juiz de Fora: desenvolvimento, urbanização e violĂȘncia, do ImpĂ©rio Ă s primeiras dĂ©cadas do sĂ©culo XXI”. Organizada pela professora de direito penal e criminologia da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Ellen Rodrigues, a obra reĂșne a pesquisa de iniciação cientĂfica de mesmo nome realizada entre 2018 e 2019 pelos entĂŁo acadĂȘmicos integrantes do NĂșcleo de ExtensĂŁo e Pesquisa em CiĂȘncias Criminais (NEPCrim) da Faculdade de Direito da UFJF: Eduardo Khoury Alves, Igor de Sousa Figueiredo, LĂvia Calderaro Garcia, Luiza Cunha Lenzi, MĂĄrio JosĂ© Bani Valente, Naiara Marques de Britto e Pedro Rivello da Costa GuimarĂŁes.
O lançamento presencial acontece na prĂłxima terça-feira (23), no Anfiteatro da Faculdade de Direito da UFJF, entre as mais de 90 atividades da II Semana da integração e da inovação do mesmo curso. “O propĂłsito Ă© integrar os segmentos docente, discente e tĂ©cnico; o ensino, a pesquisa e a extensĂŁo; a comunidade interna e a comunidade externa. As atividades sĂŁo abertas ao pĂșblico em geral e gratuitas”, destacou Ellen, ao conceder esta entrevista Ă Tribuna.
Tribuna de Minas – No livro, a escalada da violĂȘncia vivenciada em Juiz de Fora desde 2011 Ă© relacionada a desdobramentos decorrentes do processo de crescimento econĂŽmico e da urbanização da cidade na transição do sĂ©culo XIX para o XX. Em linhas gerais, como ocorre essa conexĂŁo?
Ellen Rodrigues – Ao longo da obra, sĂŁo oferecidas categorias de pensamento para que o leitor tenha condiçÔes de refletir sobre o fato de que a dita escalada da violĂȘncia vivenciada no municĂpio de Juiz de Fora desde o ano de 2011 nĂŁo pode ser vista de forma isolada e tampouco reduzida a anĂĄlises puramente estatĂsticas. Nesse sentido, oferece-se uma visĂŁo contra-hegemĂŽnica quanto aos discursos alarmistas em relação Ă questĂŁo criminal no municĂpio, relacionando a questĂŁo da violĂȘncia a uma sĂ©rie de desdobramentos decorrentes do processo de crescimento econĂŽmico e urbanização da cidade na transição do sĂ©culo XIX para o XX, cujas permanĂȘncias podem ser sentidas atĂ© a contemporaneidade. Tal visĂŁo Ă© empreendida por meio de uma anĂĄlise histĂłrica, calcada em um aporte criminolĂłgico-crĂtico, sobre as consequĂȘncias da falta de polĂticas sociais integradas para o crescimento do municĂpio, de modo a perceber os reflexos decorrentes de tal processo na vida social e na segurança pĂșblica na atualidade. Nesse sentido, apresenta-se a evolução histĂłrica dos percursos vivenciados pelos agentes de poder, pelos escravos e por outros grupos marginalizados no cotidiano da cidade. Ademais, alĂ©m das transformaçÔes ocorridas na cidade Ă luz do Ămpeto desenvolvimentista da primeira RepĂșblica, foram destacadas as reformas urbanas marcadas pelo higienismo e pela apartação social dos pobres, que deram inĂcio ao que mais tarde ficaria conhecido como o processo de favelização da cidade. Na sequĂȘncia, foram apresentados os desdobramentos do crescimento desordenado da cidade e do custo social daquele para os moradores das periferias que foram se formando ao longo da segunda metade do sĂ©culo XX. Ao aproximar o estudo da realidade atual, demonstrou-se, em meio a crises econĂŽmicas e novos influxos de crescimento no inĂcio dos anos 2000, o aumento dos Ăndices de crimes violentos no municĂpio. Ao analisar dados mais recentes sobre a questĂŁo criminal no municĂpio, o estudo aponta indicadores que demonstram que as regiĂ”es com os maiores registros de crimes violentos representam tambĂ©m os locais que historicamente sofrem com ausĂȘncia de equipamentos pĂșblicos de saĂșde, educação, cultura, lazer, alĂ©m de contarem com problemas quanto a polĂticas pĂșblicas de habitação, saneamento, emprego e renda, o que se lhes impĂ”e elevados Ăndices de vulnerabilidade social.
Como a falta de polĂticas sociais integradas ao longo da histĂłria de Juiz de Fora contribuiu para a explosĂŁo da violĂȘncia na dĂ©cada passada? Os conflitos urbanos refletem a histĂłrica desigualdade social?
Ressalta-se que uma das principais caracterĂsticas do estudo Ă© a anĂĄlise nĂŁo apenas das relaçÔes entre violĂȘncia e espaço urbano, mas tambĂ©m as relaçÔes do espaço urbano com os sujeitos apontados como autores de crimes, as vĂtimas, a comunidade afetada pelos delitos e a reação social em relação Ă insegurança social devido aos delitos ou a eles atribuĂda. Porquanto, juntamente com os levantamentos estatĂsticos sobre os locais onde as ocorrĂȘncias mais recentes de crimes vĂȘm se destacando, foram apresentados aspectos histĂłricos dos bairros tidos como os mais violentos. Assim, na anĂĄlise das relaçÔes entre fatores histĂłricos de criminalização em diferentes regiĂ”es da cidade, o estudo chama a atenção para a ausĂȘncia de planejamento urbano que levasse em conta as vulnerabilidades sociais existentes, bem como o perfil seletivo das polĂticas pĂșblicas historicamente levadas a efeito no municĂpio. (…) No comparativo com os dados nacionais, tambĂ©m foi possĂvel observar que a cidade seguiu o padrĂŁo nacional no que tange Ă vitimização, havendo predominĂąncia do pĂșblico jovem, negro e do sexo masculino como o mais vitimado. (…)
Quais sĂŁo as possĂveis relaçÔes entre os Ăndices de violĂȘncia recentes e a urbanização das regiĂ”es consideradas mais vulnerĂĄveis hoje? Como o trĂĄfico de drogas e a vitimização de jovens estĂŁo inseridos nesse contexto?
(…) Os achados da pesquisa nos permitiram perceber que as origens de muitos bairros juiz-foranos se relacionam a processos de ocupação desorganizados, marcados por arbitrariedades, violĂȘncias e toda sorte de violaçÔes aos direitos e liberdades individuais, o que propiciou a emergĂȘncia de cenĂĄrios de escassez que, aos poucos, foram se convertendo em palcos de disputas e rivalidades. Assim, acredita-se que boa parte dessas rixas entre jovens de bairros tidos atualmente como rivais represente, ao fim e ao cabo, uma forma de atualização e permanĂȘncia dos conflitos gestados desde as fases iniciais do surgimento desses bairros. Nessa perspectiva, vĂȘ-se a importĂąncia de se recuperar a histĂłria dos espaços para a elaboração de programas de prevenção Ă violĂȘncia que, de fato, façam sentido para seus destinatĂĄrios. Nesse sentido, em atenção Ă delinquĂȘncia e Ă vitimização da juventude e Ă s peculiaridades que tocam a questĂŁo juvenil no municĂpio, como brigas entre bairros e conflitos relacionados ao trĂĄfico de drogas, foram apresentadas contribuiçÔes para percepçÔes mais aprofundadas sobre os jovens juiz-foranos. Com apoio de estudos empĂricos prĂ©vios, demonstrou-se uma sĂ©rie de aspectos que reclamam atenção do poder pĂșblico e da sociedade como um todo para a construção de polĂticas de segurança pĂșblica e polĂticas sociais mais efetivas e que contemplem as demandas reais dos jovens do municĂpio e contribuam para a prevenção de novos delitos, com destaque para a necessidade de criação de açÔes voltadas Ă sua educação e inserção no mercado de trabalho, bem como espaços pĂșblicos que proporcionem lazer, cultura, esportes e diferentes formas de socialização.
A repressĂŁo, o aumento da vigilĂąncia e o encarceramento, destacados Ă frente nas polĂticas pĂșblicas atuais, contribuem de forma eficaz para a redução da violĂȘncia? Investimentos na prevenção Ă criminalidade seriam mais eficientes?
Nos Ășltimos anos, as demandas por incremento dos programas de segurança pĂșblica vĂȘm ocupando lugar de destaque na agenda local, o que reflete o cenĂĄrio nacional e, atĂ© mesmo, global. No entanto, a despeito de reflexĂ”es mais aprofundadas sobre o tema, a população juiz-forana vem clamando por medidas incisivas de combate e repressĂŁo ao crime, em detrimento da construção de agendas voltadas Ă prevenção de novos crimes e edificação de novos mecanismos de resolução de conflitos. Como aponta a moderna pesquisa criminolĂłgica, um dos traços mais marcantes da contemporaneidade Ă© justamente essa demanda por aumento das forças repressivas, de modo a aplacar o sentimento generalizado de insegurança social. Nesse sentido, Ă© preciso ponderar que o fato de a insegurança social e do medo do crime passarem a tomar uma posição destacada no cotidiano da cidade nos Ășltimos anos estĂĄ longe de ser um fenĂŽmeno isolado, jĂĄ que se relaciona a questĂ”es globais. Na contemporaneidade, o discurso da segurança passou a ser central na maioria das discussĂ”es. Nessa mirĂade, em Juiz de Fora, os mecanismos responsĂĄveis pela segurança pĂșblica passaram a acentuar a necessidade de implantação de um programa de segurança pĂșblica robusto e eficiente, voltado especialmente para as regiĂ”es mais pobres da cidade e capaz de alcançar, sobretudo, os jovens negros e do sexo masculino. Assim, sob o signo do perigosismo, as atores locais defendem maior repressĂŁo Ă violĂȘncia, mas nĂŁo contemplam as outras demandas sociais, deixando de lado programas mais eficientes de prevenção.
De que forma Juiz de Fora representa “as diversidades, potencialidades e especificidades do contexto nacional”, sendo considerada importante objeto de pesquisa no seu ponto de vista?
Ao refletir sobre os problemas decorrentes dos processos de crescimento mal instituĂdos e antidemocrĂĄticos da cidade, a opção por Juiz de Fora se justifica pelo fato de se vislumbrar no municĂpio a possibilidade de articulação entre as caracterĂsticas de periferia, margem e fronteira, tornando extremamente rica a anĂĄlise de sua tessitura social e urbana, sobretudo no que tange Ă s relaçÔes entre crescimento urbano, alĂ©m de polĂticas pĂșblicas incipientes quanto Ă conflitualidade social e estratĂ©gias seletivas de controle social no Ăąmbito da segurança pĂșblica. Graças a essas caracterĂsticas, Juiz de Fora tem sido objeto de estudo de muitos trabalhos historiogrĂĄficos, em virtude de a cidade ser capaz de representar, desde a transição do sĂ©culo XIX para o XX, as diversidades, potencialidades e mesmo especificidades do contexto nacional. AlĂ©m do potencial para representar o perĂodo de transição do ImpĂ©rio para a RepĂșblica, com todas as tensĂ”es que se lhe sĂŁo inerentes, Juiz de Fora tem sido palco, atualmente, de novos fenĂŽmenos que refletem a conflitualidade social no contexto neoliberal.
E quais sĂŁo as expectativas de contribuição para a segurança pĂșblica com a publicação desta obra?
O livro busca chamar a atenção para a importĂąncia da edificação de polĂticas de segurança pĂșblica que incluam as potencialidades e as fragilidades do espaço urbano em seu escopo. Nesse sentido, em vez de fazer conjecturas tendentes a contribuir para debates alarmistas sobre a violĂȘncia em Juiz de Fora, a obra procura demonstrar as possĂveis relaçÔes entre os dados levantados e os cenĂĄrios de vulnerabilidade social existentes na cidade, na expectativa de que Ă luz dos percursos histĂłricos consignados no texto, bem como das demais anĂĄlises apresentadas, possam ser erigidos fecundos debates sobre o tema na cidade, bem como sejam impulsionadas reformas legislativas e mudanças quanto Ă orientação dos programas de intervenção social destinados aos adolescentes e jovens. Por fim, salienta-se a importĂąncia de estruturação de uma polĂtica criminal em nĂvel local, capaz de envolver a comunidade e os agentes de controle social informal (como igrejas, sindicatos, associaçÔes, clubes de recreação e esportes, educadores, lĂderes locais etc.) para que atuem conjuntamente com os representantes das agĂȘncias de controle social formal (polĂcia e judiciĂĄrio) na edificação de estratĂ©gias preventivas, pois uma das principais caracterĂsticas dos projetos bem sucedidos em termos de redução de indicadores criminais Ă© o respeito Ă autonomia da comunidade local.