Ameaçado de extinção, maior primata das Américas nasce em Ibitipoca
Filhote de Muriqui-do-norte é fruto de cruzamento estimulado por pesquisadores, em experiência inédita
Se você vive na Zona da Mata mineira, são grandes as chances de o local onde você abre o seu jornal ou encara a tela do seu computador ou celular ter sido, em um passado distante, o lar de um grupo do maior primata das Américas, o muriqui-do-norte. Este macaco, que pode chegar a um metro de altura e pesar entre 12 e 15 quilos, é um habitante nativo da faixa de Mata Atlântica que compõe os estados de Minas Gerais, Espírito Santo e parte da Bahia. O bioma concentra uma das maiores biodiversidades do mundo e sofre com um processo de degradação – estima-se que somente 12,4% de Mata Atlântica ainda reste no país. A devastação também atinge os muriquis, que correm risco crítico de extinção, com aproximadamente 850 indivíduos restantes. Entretanto, no início deste mês, foi registrado o nascimento de um muriqui-do-norte, fruto de uma experiência inédita de manejo relacionada à conservação desses primadas em Conceição do Ibitipoca, a quase 90 quilômetros de Juiz de Fora.
A iniciativa, coordenada pelo Muriqui Instituto de Biodiversidade (MIB), reuniu um grupo de muriquis-do-norte em cativeiro pela primeira vez, o que permitiu aos pesquisadores mais possibilidades de controle sobre o relacionamento dos indivíduos. No ano passado, os especialistas construíram um grande viveiro batizado de Casa do Muriqui (Muriqui House), que, na verdade, funcionou mais como um hotel e passou a receber hóspedes muriquis que viviam isolados em diferentes locais. A primeira hóspede foi a fêmea Ecológica, que chegou em março de 2019. Posteriormente, os irmãos Bertolino e Luna, ambos machos, que viviam isolados em uma mata de Ibitipoca, foram incorporados ao recinto, em junho e agosto, respectivamente. A última a chegar foi a fêmea Socorro, em outubro do ano passado.
“Nunca tínhamos tido essa oportunidade de ter os bichos numa condição de controle como essa. Lá a gente tem uma mata de um hectare e meio, cercada e que fica junto de um grande viveiro que construímos. Nós utilizamos esse grande recinto para colocar os bichos para se conhecerem”, explica o biólogo Fabiano Rodrigues de Melo, coordenador do projeto que trabalha com primatas ameaçados de extinção há 25 anos. De acordo com o especialista, a Casa do Muriqui foi essencial para que os quatro animais ressocializassem e pudessem formar um grupo ativo. “Os bichos ficam tantos anos sozinhos e isolados que às vezes não é tão fácil pra eles reconhecerem indivíduos da própria espécie”.
Ressocialização
Essa dificuldade de reconhecimento ficou evidente em uma experiência realizada em 2018, também em Ibitipoca. Pesquisadores levaram a muriqui Esmeralda para a mata onde originalmente viviam Bertolino e Luna, na esperança de que os indivíduos pudessem copular e se reproduzir. No entanto, os comportamentos eram de extremos opostos. Enquanto os irmãos permaneciam praticamente no mesmo local durante todo o dia, a jovem fêmea explorava os limites da mata onde foi solta, se tornando cada vez mais difícil para os pesquisadores monitorarem seu comportamento. Após tempos de buscas, a equipe de especialistas não encontrou mais os rastros de Esmeralda, que foi dada como perdida. “Na ocasião, com a Esmeralda, não deu certo. A gente não pegou os machos naquela vez. Eles estavam na mata onde eles nasceram e nós soltamos a fêmea e ela não se associou a eles. Por isso nós tivemos esse insight de colocá-los em um recinto grande primeiro para eles ressocializarem”, complementa Fabiano.
Em fevereiro deste ano, quando os quatro estavam bem ambientados no recinto e respondendo aos estímulos sociais de um grupo, as portas da Casa do Muriqui foram abertas, e os animais passaram a viver na mata vizinha ao recinto. No dia 3 de novembro, Ecológica foi vista com seu bebê no colo, um sinal de que a integração foi bem sucedida. Segundo o pesquisador, a gestação de uma muriqui dura em média sete meses e meio, o que leva a crer que a cópula aconteceu pouco depois de o grupo ser solto no espaço mais amplo.
Pelo histórico dos machos, tudo leva a crer que o pai seja Bertolino, o mais velho da dupla de irmãos. Isso porque, antes de viverem isolados, os dois compunham um grupo de sete indivíduos, e Bertolino, que possui uma idade aproximada de 30 anos, era visto tendo cópulas frequentes com as fêmeas. “Quando nós conhecemos o Luna em 2004 ele ainda era muito jovem. Eu fui o primeiro pesquisador a ir em Ibitipoca e conhecer o grupo de onde esses machos vieram. Quando o restante do grupo sumiu e ele ficou adulto, não tinha mais fêmea no grupo pra ele copular. Então, provavelmente, ele nem mesmo sabe o que é isso. Há grandes chances de o pai ser o Bertolino”, conta.
“Esse filhotinho macho é o primeiro caso de sucesso de uma reprodução nessas condições. É uma espécie que nunca passou por essa experiência”, comemora o especialista, complementando que o nome do pequeno muriqui será escolhido por votação popular nas redes sociais do instituto (@mib_muriqui). Nas observações iniciais foi constatado que a mãe e o seu filhote estão bem e saudáveis.
Em busca de uma nova integrante
Durante a última semana, a equipe do MIB que coordena o projeto em Ibitipoca esteve em expedição no município de Espera Feliz para capturar uma possível nova integrante para o grupo. A missão realizou buscas por uma muriqui fêmea, batizada de Bonita, mas após dias de monitoramento ela não foi encontrada, e a equipe foi desmobilizada. Uma nova expedição de busca será realizada, mas ainda não há previsão.
Apesar de possuírem o temperamento tranquilo e não apresentarem hierarquia entre os indivíduos, somente as fêmeas podem ser aceitas em um novo grupo. Isso porque os machos não migram, sendo essa uma característica reservada apenas às fêmeas. “A Bonita viria para somar e aumentar o grupo, porque na natureza os machos adultos não brigam pelas fêmeas. Então, quanto mais fêmeas a gente tem, mais indivíduos nascem, e assim aumentamos o grupo, que é o que a gente precisa fazer”, conclui Fabiano.