Mensagem nas redes incentiva alunos a denunciarem professores
Docentes se sentiram ameaçados com o conteúdo divulgado nos últimos dias, principalmente pelo WhatsApp
Repercutem em Juiz de Fora mensagens chamando a atenção de estudantes para que filmem e denunciem “professores doutrinadores” em sala de aula. A iniciativa vai ao encontro da conduta da deputada estadual eleita por Santa Catarina (SC), Ana Caroline Campagnolo (PSL), que criou um canal informal de denúncias na internet com o intuito de gravar professores. A atitude dela já está sendo investigada pelo Ministério Público Federal. Situação semelhante ocorre em Juiz de Fora, onde um grupo que se autodenomina Comissão da Sociedade Civil pela Educação, também está incentivando estudantes a denunciarem os educadores.
A mensagem diz que teve início “uma nova era” e que, nesta semana, “professores doutrinadores estarão inconformados e revoltados” diante do resultado das eleições. Conforme a divulgação, que está circulando nas redes sociais, principalmente no WhatsApp, muitos professores “não conterão sua ira e farão da sala de aula um auditório cativo para queixas político partidárias em virtude da vitória de Bolsonaro”. Segundo a mensagem, a orientação para quem quiser fazer a denúncia é ligar para os números de dois telefones que são divulgados. Na ligação, o denunciante deve informar o nome do professor, a matéria que leciona e a escola onde atua. A postagem termina afirmando que é garantido aos denunciantes o anonimato.
Apesar disso, não explica que medida será tomada. A postagem desta tal Comissão local começou a circular na rede logo após o anúncio da vitória de Jair Bolsonaro (PSL) na disputa presidencial, no domingo (28), levando insegurança a professores e indignação a pais e estudantes. A Tribuna teve acesso a desabafos de professores em grupos privados nas redes sociais nos quais alguns relataram o medo de entrar em sala de aula. Em uma das mensagens recebidas pelo jornal, uma professora afirma que foi alertada por um estudante que os demais alunos da sala preparavam uma armadilha para ela. Eles combinaram que incitariam a professora a falar de política, enquanto um deles estaria com um celular escondido para filmá-la e, posteriormente, denunciá-la. Em outras mensagens, muitos professores, às vezes em prantos, afirmavam sobre o medo de continuar atuando no setor de educação, uma vez que já enfrentam uma desvalorização profissional e, agora, têm que lidar com ameaças e intimidações de alunos.
Grupo diz se empenhar pela neutralidade política em sala de aula
Segundo pais, estudantes e professores que ligaram para os telefones divulgados para as denúncias, a Comissão da Sociedade Civil pela Educação seria uma iniciativa que partiu de um grupo apartidário composto por professores, advogados, médicos, psicólogos e outros profissionais liberais. A formação da comissão teria acontecido em outubro de 2017 com objetivo para lutar por uma educação livre. Conforme as mensagens que chegaram ao jornal, o representante da comissão explica que o grupo empenha-se para que alunos recebam tratamento com neutralidade política dentro de sala de aula. Tal comissão teria pontuado que não pode o professor fazer apologia junto a seus alunos sobre determinado candidato ou certa ideologia. O objetivo da comissão seria receber as denúncias e analisar cada fato. Uma primeira ação seria conversar com a direção da escola a fim de resolver a situação. Caso isso não ocorra, a solução seria tentada pelas vias judiciais.
A comissão estaria disposta a atuar em casos que envolvem escolas públicas e privadas, mantendo o sigilo dos denunciantes e não cobrando honorários para prestar esses serviços. Uma mãe contou ao jornal que recebeu a informação por parte da comissão sobre a denúncia de um professor de matemática que dentro da sala de aula só falava de política e não ensinava a matéria, o que fez a família se sentir prejudicada, pois teve que pagar aula de reforço para o estudante. Em ligação realizada pelo jornal ao telefone que é divulgado na mensagem, o representante disse que não gostaria de ser identificado e que não informaria sobre quem são as pessoas que fazem parte da comissão e que a iniciativa somente diz respeito ao grupo e aos pais dos alunos. Ele enfatizou que a comissão não agia contra os professores, mas para que o ensino em sala de aula se desse de forma plural.
Comissão desconhecida
A Secretaria de Educação de Juiz de Fora informou que desconhece a Comissão da Sociedade Civil pela Educação e destacou que existe, no âmbito municipal, o Comitê de Ouvidoria Educacional, que se constitui como um mecanismo de escuta das comunidades interna e externa, mediando os interesses educacionais recíprocos da coletividade e do sistema Municipal de Ensino. O órgão pode ser contactado pelo telefone 2104-7007 ou via e-mail [email protected]. A Secretaria de Estado de Educação, por meio de sua assessoria de comunicação, informou que não irá se pronunciar sobre o tema, por considerar que não faz parte de sua competência.
Professora procura Superintendência após ser gravada
Enquanto explicava para seus alunos do ensino médio um trabalho de literatura sobre o livro “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo, a professora de português, Beatriz Jobim, teve a aula gravada em áudio por um dos estudantes, nesta terça-feira (30). Apreensiva diante da ousadia, ela procurou a Superintendência Regional de Ensino para dar ciência sobre o ocorrido em sala de aula. Segundo a docente, que já atua há 14 anos na área de educação, após a orientação sobre o trabalho, ela passou a explicar sobre pontuação, no livro didático.
“Expliquei uma matéria que já havia postado material para os alunos via WhatsApp e faríamos um exercício na página do livro sobre essa matéria. Como a funcionária da escola pediu que liberasse os meninos um pouco mais cedo devido a uma reunião que teria entre professores, eles ficaram agitados, quando um aluno levantou o celular e disse assim: “Eu estou gravando”. Eu disse que só estava explicando o que deveria ser feito, porque é comum a realização de exercício para fixar a matéria. Eu disse: É sério isso? Ele respondeu: não, professora, é uma brincadeira! Mas o que me deixa aturdida é que é uma brincadeira hoje e pode não ser a partir do dia 1º de janeiro”, ressaltou a professora.
Conforme Beatriz, além da Superintendência, também procurou a Câmara Municipal a fim de propor que o tema fosse debatido, para chamar a conscientização da população. “Todos os professores estão temerosos, porque não há um trabalho de conscientização desses alunos, e eles são meninos com menos de 18 anos e que ainda não têm uma consciência formada. Embora eles votem aos 16 anos, ainda está sendo formada uma série de cognições, hábitos e de ideologia. Esses meninos estão indo contra ao fluxo da formação, porque se eles não querem fazer um simples dever, eles acham que você, professor, está contra eles. Portanto, eles te filmam, e essa filmagem pode ser deturpada, colocando dizeres que não produzimos, mostrando a gente falando outra coisa”, alerta Beatriz, ressaltando que nunca fez apologia a partidos ao longo dos anos que leciona. “Dou aula de português, e meus textos são voltados para a gramática e para a literatura. As pessoas precisam tomar consciência, porque os alunos estão sendo respaldados para fazer ameaças. Temos o nosso direito de imagem e de voz que não está sendo resguardado”, avaliou.
Sinpro diz que advogados estão à disposição de docentes
A coordenadora do Sindicato dos Professores de Juiz de Fora (Sinpro JF), Cida Oliveira, avaliou que o incentivo para denunciar professores, dizendo que estão fazendo doutrinação de aluno é uma tentativa de intimidação da categoria. A mensagem que circulou nos últimos dias pelas redes sociais como se fosse desta comissão não reconhecida pelo Município só representa, segundo a sindicalista, insegurança para toda a classe. “O sindicato quer tranquilizar os professores, porque não vamos permitir que esse tipo de conduta se transforme em algo comum. Nossos advogados estarão à disposição e vão avaliar todas as medidas cabíveis, pois incitar as denúncias é inconstitucional”, pontuou Cida.
A Tribuna solicitou posicionamento da Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino da Região Sudeste de MG (Sinepe/Sudeste), mas, até o fechamento desta edição, não houve resposta. A diretora da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), Cristina Castro, afirmou repudiar esse tipo de conduta de ameaça a professores, ressaltando que o artigo 206 da Constituição Federal assegura que o ensino será ministrado com base na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. “Esse comportamento traz um retrocesso que a educação não precisa. Hoje, o que se busca é a ampliação da qualidade da educação”, ressaltou Cristina, acrescentando que a Contee irá buscar os órgãos competentes para que tal atitude não se torne uma prática.
Ministério Público se posiciona contra assédio a docentes
São Paulo (Agência Estado) – O Ministério Público Federal (MPF), em Chapecó (SC), recomendou às universidades da região e gerências regionais de educação “que se abstenham de qualquer atuação ou sanção arbitrária e mesmo que impeçam qualquer forma de assédio moral a professores, por parte de estudantes, familiares ou responsáveis”. A recomendação atende representações recebidas pela Procuradoria da República sobre um canal anônimo de denúncia contra professores criado pela deputada estadual eleita em Santa Catarina Ana Caroline Campagnolo (PSL), aliada do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Após a vitória do deputado nas eleições 2018, Ana Caroline abriu um canal informal de denúncias na internet para fiscalizar docentes em sala de aula a partir da segunda-feira (29). A deputada eleita pede que vídeos e informações sejam repassados para o seu número de celular com o nome do professor, da escola e da cidade. “Garantimos o anonimato dos denunciantes”, diz a imagem compartilhada pela deputada em uma rede social. Ana Caroline conclamou alunos a filmar o que ela denomina de “professores doutrinadores”.
Segundo a deputada eleita, os docentes “inconformados e revoltados” com o resultado da eleição para presidente da República fariam das salas de aula “auditório cativo para suas queixas político-partidárias”, insuflando os estudantes a filmar e gravar todas as manifestações que, em seu entendimento, seriam “político-partidárias ou ideológica (sic)”. A recomendação do Ministério Público, se ignorada, pode implicar em responsabilização. Na recomendação, a Procuradoria aponta que pesquisas realizadas no Facebook “denotam que efetivamente a deputada estadual catarinense, eleita no recente pleito, manifestou-se nesse sentido”. O Ministério Público anexou à Recomendação cópia de imagens da aliada de Bolsonaro nas redes sociais. Em uma delas, Ana Campagnolo aparece empunhando uma arma. Na avaliação do Ministério Público Federal, a conduta, “além de configurar flagrante censura prévia e provável assédio moral em relação a todos os professores do Estado de Santa Catarina – das instituições públicas e privadas de ensino, não apenas da educação básica e do ensino médio, mas também do ensino superior – afronta claramente a liberdade e a pluralidade de ensino”.
Na recomendação, a Procuradoria da República destaca a abertura de inquérito civil, “que objetiva apurar suposta intimidação a professores do Estado de Santa Catarina por parte de deputada estadual eleita no último pleito”. Historiadora, Ana Campagnolo processou a professora Marlene de Fáveri, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), e sua ex-orientadora no mestrado, em 2016, por suposta “perseguição ideológica”. O caso, que marcou as discussões acerca do movimento Escola Sem Partido, foi julgado improcedente em setembro deste ano pelo 1º Juizado Especial Cível de Chapecó, mas a atual deputada recorreu. A aprovação do projeto Escola Sem Partido no Congresso é uma das principais bandeiras de Jair Bolsonaro. O movimento, por sua vez, já foi contestado pela Advocacia-Geral da União (AGU), Ministério Público Federal (MPF) e associação de professores.
‘O importante é incentivar os alunos a pensar, questionar, refletir’
São Paulo (Agência Estado) – Especialistas e até o ministro da Educação, Rossieli Soares, criticaram a atitude da deputada estadual eleita pelo PSL de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo. O ministro da Educação, Rossieli Soares, disse que “esse não é o caminho adequado para problemas dentro da escola. Há canais na diretoria, nas secretarias municipal e estadual para denúncias”. Dois membros do Conselho Nacional de Educação (CNE) também criticaram a atitude da deputada. “É preciso tomar cuidado porque isso pode descambar para uma censura da atividade docente”, disse o ex-secretário de Educação de Santa Catarina Eduardo Deschamps, que é também conselheiro do CNE. Para ele também, nesse momento, o Brasil precisa de conciliação e não de “ações dessa natureza”. “Essa onda de denuncismo não é boa para ninguém.” Para outro membro do conselho e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Francisco Soares, a proposta é o oposto do que se quer para uma educação de qualidade. “O importante é incentivar os alunos a pensar, questionar, refletir. E não a achar que sabe tudo e pode denunciar.”