Ato contra ‘cura gay’ reĂșne centenas de pessoas no Centro de JF
Manifestação ocorreu em frente à Cùmara; especialistas avaliam efeitos da decisão judicial
JĂșlia PessĂŽa e Carime Elmor RepĂłrteres
Unindo-se a sĂ©rie de atos realizados em todo o paĂs Ă s 17h desta sexta-feira (22) contra a liminar expedida no Ășltimo dia 15 pelo juiz Waldemar ClĂĄudio de Carvalho, da 14ÂȘ Vara do Distrito Federal, que autoriza a realização de pesquisas e o tratamento de “reversĂŁo sexual”, dezenas de pessoas reuniram-se ontem em frente Ă CĂąmara Municipal em protesto. O ato começou a ganhar mais adeptos por volta das 18h30. Pouco antes das 19h, apĂłs falas de lideranças, a manifestação se dirigiu ao CalçadĂŁo da Halfeld, parando por instantes no cruzamento com a Rio Branco. O ato seguiu atĂ© a Praça AntĂŽnio Carlos. Segundo estimativa da PM, 200 pessoas participaram do ato. No entanto, participantes acreditam que o nĂșmero chegou a 400. Durante o trajeto, entoavam gritos como “as gay, as bi, as trans e as sapatĂŁo. TĂĄ tudo organizado pra fazer revolução.”
Houve presença em peso de manifestantes muito jovens, alguns acompanhados por suas famĂlias, como o adolescente trans Pedro Jacobsen, 17 anos. Sua mĂŁe nĂŁo apenas apoiou o ato, mas pretende criar uma rede de apoio para mĂŁes de filhos e filhas LGBTTI, fundando em JF o “MĂŁes pela diversidade”, movimento que jĂĄ existe nacionalmente.
“A ideia Ă© orientar as mĂŁes para que estejam aptas a apoiar seus filhos e filhas. Estamos aqui para mostrar que nossos filhos sĂŁo saudĂĄveis, doente Ă© o tratamento que a sociedade dĂĄ a eles. Muitos adoecem por causa deste tratamento”, diz ela. Para Pedro, o apoio da mĂŁe foi fundamental. “Foi o que me salvou e permitiu que eu fosse quem eu sou. E vĂȘ-la criar este movimento para permitir que outras mĂŁes façam isso Ă© lindo”. Para o estudante Avelino, que exibia uma faixa com os dizeres “Sr.Juiz pare agora”, Ă© essencial que haja mobilização da sociedade. “Precisamos ter voz e mostrar quem somos, sem ter alguĂ©m que nos impeça.”
As psicĂłlogas Brune Coelho e Daniele Mesquita, que integram o Grupo de Trabalho de GĂȘnero e Sexualidade do Conselho Regional de Psicologia, tambĂ©m presentes no ato, afirmaram que a decisĂŁo da liminar tangencia exatamente as questĂ”es abordadas pelo trabalho da organização. “A maior parte dos psicĂłlogos e psicĂłlogas estĂĄ indignada com essa decisĂŁo, que fere princĂpios bĂĄsicos da profissĂŁo. A psicologia trabalha justamente na despatologização das identidades LGBTTI, e autorizar estas terapias tem efeitos extremamente danosos para os pacientes”, diz Brune. “Os danos psĂquicos da comunidade LGBTTI tĂȘm origem no preconceito, que Ă© respaldado por decisĂ”es como esta, completa Daniele.
DecisĂŁo abre perigosos precedentes jurĂdicos e no campo da psicologia
Segundo AndrĂ©ia Stenner, doutora em teoria psicanalĂtica pela UFRJ e especialista em saĂșde mental pela Escola de SaĂșde PĂșblica de Minas Gerais, a liminar que autoriza a realização de terapias de reversĂŁo sexual nĂŁo apenas desrespeita o Conselho Federal de Psicologia (CFP), que desde 1999 proĂbe tais procedimentos, mas tambĂ©m abre brecha para discursos e atos homofĂłbicos. “Qualquer prĂĄtica terapĂȘutica que vise a tratar a homossexualidade parte de uma promessa que cientificamente nĂŁo tem comprovação alguma e que, no cenĂĄrio brasileiro, em que existem tantos crimes motivados por homofobia, as questĂ”es de gĂȘnero devem ser abordadas alinhadas e alicerçadas nos direitos humanos e nas prĂłprias consideraçÔes feitas pela ĂĄrea de saĂșde. Ă importante lembrar que a Organização das NaçÔes Unidas (ONU) trouxe para o Brasil uma agenda especĂfica para a população LGBTTI, para assegurar os direitos desta população”, diz a psicĂłloga, tambĂ©m professora da EstĂĄcio de SĂĄ, destacando que a OMS nĂŁo prevĂȘ a homossexualidade e a homoafetividade como patologias desde 1975.
AndrĂ©ia rebate outro argumento usado para sustentar a liminar, em prol da liberdade de pesquisa cientĂfica dos psicĂłlogos. “O psicĂłlogo tem como dever Ă©tico e profissional acolher e tratar o sofrimento de qualquer pessoa, em qualquer condição, mas jamais mudar a identidade de gĂȘnero ou orientação sexual, nĂŁo existe tratamento embasado cientificamente para este fim. E, alĂ©m disso, nĂŁo cabe ao JudiciĂĄrio legislar sobre o que Ă© de Ăąmbito da saĂșde”, destaca a profissional.
Alinhada ao discurso da psicĂłloga, Joana Machado, professora da Faculdade de Direito da UFJF e integrante da ComissĂŁo de Direitos Humanos e Cidadania da OAB/JF, destaca que algumas decisĂ”es discursivas da liminar, como nĂŁo usar termos como “cura” ou “doença”, tĂȘm o efeito de inibir a leitura de que o posicionamento “se trate de uma decisĂŁo despudoradamente polĂtica, comprometida com agenda conservadora e/ou fundamentalista”, como ela frisa.
“Tanto que, para muitos defensores da decisĂŁo, o juiz apenas possibilitou orientação psicolĂłgica Ă população LGBTTI, como se o termo ‘reorientação’ significasse apenas acompanhamento, acolhimento, e nĂŁo uma promessa de reorientação sexual, promessa vazia e violenta de reversĂŁo. Essa escolha serviu para confundir, porque deu a entender, para quem nĂŁo se deu ao trabalho de ler a resolução questionada, que a população LGBTTI estava impedida de buscar ajuda de profissionais da psicologia, e que a decisĂŁo veio a favorecĂȘ-la! Por fim, o uso de argumentos constitucionais (notoriamente mal empregados, mas ainda que nĂŁo o fossem) serve para camuflar a escolha do magistrado com a suposta neutralidade da tĂ©cnica jurĂdica, para naturalizĂĄ-la, como se o Direito, enquanto sistema, e nĂŁo a prĂłpria figura do magistrado, Ă© que estivesse a decidir”, pontua.
ManifestaçÔes populares, institucionais e legais ajudam a combater a medida
A professora Joana Machado lembra que a linha argumentativa da liminar Ă© a mesma que jĂĄ foi utilizada por setores junto ao Poder Legislativo quando, pela via parlamentar, em uma tentativa prĂ©via de se esvaziar a resolução do CFP que proĂbe terapias relacionadas Ă reversĂŁo sexual, como o projeto apresentado em 2013 pelo deputado JoĂŁo Campos (PSDB-GO) e defendido pelo tambĂ©m deputado Marco Feliciano (PSC-SP). Como a decisĂŁo de agora, o projeto evitava certos termos, mas na prĂĄtica, abria precedentes para pseudotratamentos da orientação sexual. “TambĂ©m o discurso religioso consegue se adaptar e substituir, quando necessĂĄrio, o Ăłdio panfletĂĄrio por formalismo jurĂdico e obter o mesmo resultado pretendido. A diferença Ă© que, quando o JudiciĂĄrio, sobre o qual hĂĄ uma expectativa de legitimação tĂ©cnica, assume o papel de autorizar esse tipo de violĂȘncia simbĂłlica, nĂŁo apenas a institucionalizando, mas forjando uma razĂŁo tĂ©cnica para a sua aceitação, a sociedade pode se sentir mais convidada a perpetuĂĄ-la.”
Segundo Joana, como se trata de decisĂŁo em sede de liminar, hĂĄ fundamentos materiais e vias formais para se combatĂȘ-la, como a possibilidade de o CFP interpor agravo de instrumento para buscar derrubĂĄ-la. “Inclusive, a OAB jĂĄ se pronunciou no sentido de pretender auxiliar, como amicus curiae (amiga da corte), o CFP nessa caminhada. Ă importante destacar quando, a despeito da tradição conservadora que marca o campo jurĂdico, atores jurĂdicos conseguem efetivamente se posicionar contra injustiças e nĂŁo se esconderem em discursos aparentemente isentos, pseudo neutros e/ou conciliatĂłrios. Estamos a refletir sobre uma população que Ă© morta diariamente no paĂs e a omissĂŁo, nesse contexto, significa assumir o lado da opressĂŁo, da violĂȘncia. Ă possĂvel fazer a necessĂĄria crĂtica ao campo jurĂdico sem desistir de transformĂĄ-lo, sem deixar de comemorar, ainda que sob o alerta de suas limitaçÔes, os bons resultados que nele (em geral por pressĂ”es mais externas) aflorem.
Na Ășltima quinta-feira (21), o Conselho Federal de Psicologia (CFP) recorreu da decisĂŁo do juiz da 14ÂȘ Vara do Distrito Federal, Waldemar ClĂĄudio de Carvalho. Diversas instituiçÔes da ĂĄrea de saĂșde manifestaram repĂșdio Ă liminar, alĂ©m de movimentos sociais, instituiçÔes pĂșblicas e privadas, polĂticos, celebridades e populates. Para a psicĂłloga AndrĂ©ia Stenner, essa mobilização Ă© imprescindĂvel para evitar o retrocesso social que a medida representa. “Elas representam nĂŁo sĂł um posicionamento, mas uma ferramenta a ser apresentada ao JudiciĂĄrio a fim de que o Brasil respeite as tratativas internacionais de que Ă© signatĂĄrio no que diz respeito Ă saĂșde e aos direitos humanos. Elas existem para que melhoremos como sociedade na forma como pensamos, nos relacionamos, atendemos a população LGBTTI no Brasil.”
Joana Machado acrescenta que Ă© preciso investir cada vez mais em açÔes afirmativas para que haja avanço na agenda de populaçÔes vulnerabilizadas, mesmo em um contexto de educação jurĂdica que, segundo a especialista, Ă© ainda elitista e arrogante. “Nosso JudiciĂĄrio, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, Ă© predominantemente composto por homens brancos cis heterossexuais, provenientes de classe mĂ©dia, classe mĂ©dia alta. Um poder, portanto, que, como os demais, padece de falta de representatividade. Com as polĂticas de açÔes afirmativas, jĂĄ começamos a ver resultados na alteração do perfil de estudantes do curso de Direito, a qual começa, a passos lentos, a repercutir no desafio Ă lĂłgica hegemĂŽnica nos cursos jurĂdicos e nos quadros profissionais desse campo. Apenas com o aprofundamento desses processos Ă© que poderemos ter juĂzes e outros atores jurĂdicos mais preparados (isto Ă©, com tĂ©cnica socialmente referenciada) e sensĂveis para a diversidade que marca as vivĂȘncias de mundo.”
A involução do pensamento
O contexto Ă© de desacreditar que possa se ter aberto uma audiĂȘncia com esse pretexto, mas sem ficar em estado de inĂ©rcia. Ă um sentimento de “desapontado, mas nĂŁo surpreso”, com a opiniĂŁo conservadora de uma parcela dos polĂticos. “NĂŁo era pra gente estar discutindo o direito dos robĂŽs em 2017? A gente ainda estĂĄ discutindo que gay Ă© doença?”, questionou JoutJout, youtuber e jornalista carioca, em um dos recentes vĂdeos de seu canal. Os compartilhamentos, gifs e comentĂĄrios acerca da “cura gay” chegou ao humor, por ser uma formação discursiva incoerente com a evolução do pensamento.
No entanto, Ă© preciso ser levado muito a sĂ©rio. “Entendo que isso esteja acontecendo porque Ă© uma parada absurda demais, mas a gente tem que pensar que existem pessoas em que a famĂlia vai apontar e encontrar algum respaldo para dizer que Ă© uma doença. Tem gente que realmente sofre com essa realidade e, Ă s vezes, acha que estĂĄ doente por causa da pressĂŁo social”, afirma Laura Conceição, 21, rapper e feminista. Laura, alĂ©m de militar pelo direito das mulheres – inclusive o de poder amar quem elas quiserem – pesquisa gĂȘnero, feminismo e comunicação em sua graduação. Sua arte, claro, reflete sua vivĂȘncia em todos esses aspectos. “Eu, como Mc, pertencente ao movimento Hip Hop, acho fundamental esse engajamento social em minhas letras. NĂŁo sĂł por eu viver a situação, mas tambĂ©m por buscar essa justiça geral.” O que mais ela tem receio Ă© que homicĂdios por homofobia e transfobia aumentem ainda mais no Brasil. “O acesso Ă informação em qualquer viĂ©s social Ă© fundamental para romper com seus preconceitos, atĂ© em relação a vocĂȘ mesmo”, complementa.
Conversando com a Laura Conceição, rapper juiz-forana, propomos a ela de compor um rap especial para essa reportagem, o vĂdeo estĂĄ disponĂvel em nosso site, e a letra vem a seguir:
A sociedade anda
Retrocedendo anos
Em armĂĄrios se armazena roupa
NĂŁo seres humanosSe eu beijar outra mulher
VĂŁo dizer que estou errada
NĂŁo caio em fina malha
Afeto envolve pessoas
NĂŁo somente genitĂĄlias
Conservadorismo leva o mundo ao fim
A quem destino meu amor
DecisĂŁo que sĂł cabe a mimBancando as minhas ideias
Vou insistir
Ătima hora pra homofĂłbico subir
Ătima hora pros boy parar de agredir
Eu sou mulher pare de me diminuir
Até onde eu sei
SĂł eu sei bem o que vivi
Hoje cedo me olhei no espelho
E amei tudo que eu viPreconceito Ă© corrente
Sejamos a ruptura
Amar nunca serå doença
Amar sempre serĂĄ cura
O amor Ă© livre
Pessoas morrem todos os dias por amar
Pense!(“Pense!”, por Laura Conceição, setembro de 2017)
A militĂąncia organizada pelos mais jovens
O ato desta sexta-feira (22) em Juiz de Fora foi organizado por alunos de ensino mĂ©dio e um aluno do 9Âș ano do ensino fundamental. De uma maneira geral, a representatividade LGBTTI na luta por direitos estĂĄ vindo muito mais de pessoas que acabaram de assumir sua identidade de gĂȘnero. “A juventude atual estĂĄ mais motivada a lutar pelos seus direitos e ideais, querendo cada vez mais conseguir seu espaço na sociedade. E isso nĂŁo Ă© sĂł na comunidade jovem LGBTQ+, em outros manifestos vemos a presença de uma população jovem. Acredito que essa militĂąncia seja importante, pois a nossa comunidade, que jĂĄ sofreu tanto calada, no passado, agora quer fazer a diferença e exigir respeito para que as prĂłximas geraçÔes possam desfrutar de um mundo onde exista igualdade”, afirmou Felipe Borges Modesto, 18 anos, que aos 16 se assumiu como homossexual e hoje Ă© um homem trans. A sigla LGBTQ+, utilizada por ele, Ă© recente e mais abrangente. Engloba os transgĂȘneros como um todo, os “queers”, que se aproximam de andrĂłgenos e “questioning”, sobre aquelas pessoas que ainda estĂŁo se permitindo descobrir e questionando a prĂłpria sexualidade, alĂ©m de outras identidades de gĂȘnero que possam existir e representar alguĂ©m.
A pauta dxs trans
Em 1992 a OMS tirou a homossexualidade do CID – Cadastro Internacional de Doença, nĂŁo sendo tratada, a partir daĂ, como um desvio ou patologia. No entanto, a transexualidade ainda permanece na 11ÂȘ edição desta classificação. A atual discussĂŁo em torno da “cura gay” levou pessoas transgĂȘnero a retomarem essa luta.
No ano passado um grupo de cientistas mexicanos realizou um estudo e apresentou resultados Ă OMS comprovando que nĂŁo se trata de um transtorno psiquiĂĄtrico, e que na verdade, qualquer questĂŁo psicolĂłgica que sofrem, tĂȘm muito mais relação com a violĂȘncia de gĂȘnero causada pelo prĂłprio preconceito.
A comunidade trans depende muito da saĂșde pĂșblica para tratamentos hormonais, essa pauta vai alĂ©m do combate Ă discriminação, Ă© a luta por seus direitos para que tenham acesso a melhores serviços de saĂșde.
Nino Ă© “femmenino”
Nino de Barros, 22 anos, Ă© gay e cisgĂȘnero. Estudante de artes no IAD da UFJF, onde começou a ter mais contato com grupos LGBTTIs. Quando se assumiu gay, aos 15 anos, seus amigos na escola eram hĂ©teros e nĂŁo tinha, ainda, um debate muito disseminado nas escolas. “Toda vez que vejo uma movimentação relacionada a ato de protesto, Ă© um povo antigo, de muito tempo e que jĂĄ trabalha com isso formalmente. Mas poder ver a galera nova tomando a frente do ato contra a liminar Ă© muito importante. A galera se junta, se organiza e usa essa força. Quando se Ă© trans ou gay adolescente, essa frustração te dĂĄ uma energia que deve ser usada como força, essa galera nĂŁo tem que sofrer em casa, tem que ir pra rua!”.