“Safadinha. VocĂȘ deve ter gostado”…
Quando soube que Ancelmo Gois seria mediador de uma mesa na qual eu falaria sobre a ditadura, fiquei muito ansiosa. Tive medo do colunista e do mito que ele Ă©, mas, ao conhecĂȘ-lo, descobri que, como eu, ele Ă© um operĂĄrio da palavra. No debate acalorado que se seguiu apĂłs a minha fala, a de minha colega Cristina Chacel e da ex-guerrilheira MarĂlia GuimarĂŁes, o jornalista fez um comentĂĄrio que me marcou muito. Respondendo a uma pergunta da plateia, ele disse a um participante da Feira LiterĂĄria de Minas Gerais (Fliminas) que ele nĂŁo imaginava o que era o Ăłdio disseminado na internet. Estava coberto de razĂŁo. Quem escreve sobre violaçÔes de direitos humanos experimenta na carne, todos os dias, o tamanho das atrocidades divulgadas nas redes sociais em forma de opiniĂŁo.
Esta semana, ao conhecer a histĂłria da britĂąnica Lillian Constantine, de 19 anos, tive mais uma dolorosa prova disso. No ano passado, a estudante de Kent, interior da Inglaterra, foi estuprada a poucos metros de casa. Apavorada diante da aproximação do desconhecido, ela ligou a cĂąmera do celular e ameaçou: “estou filmando”, gritou a jovem de 18 anos, acreditando que o gesto dela afugentaria o homem. Indiferente ao vĂdeo, o estranho a agarrou, dando continuidade ao ato de violĂȘncia sexual. O celular de Lillian caiu no chĂŁo, mas continuou filmando por tempo suficiente para registrar o rosto do agressor.
Apesar do trauma, a coragem da britĂąnica conseguiu levar o autor do crime de estupro para a cadeia. Ashraf Miah foi condenado a 13 anos de prisĂŁo. AlĂ©m das provas que foram colhidas de seu corpo violado, a imagem captada pelo celular ajudou a polĂcia a localizar o indivĂduo responsĂĄvel pelo trauma que Lillian carregarĂĄ para o resto de sua vida. Depois de ser violentada, a estudante passou por um doloroso caminho de exames, interrogatĂłrios, medicalização e repetição da histĂłria que viveu naquela noite. Sobre a perĂcia forense, ela declarou: “Ă surreal. No momento em que vocĂȘ entra, tem que se despir por completo. Precisa se deitar em uma maca de metal enquanto uma pessoa coloca instrumentos em sua vagina. Eles medem cada milĂmetro dos hematomas e cortes”, revelou a jovem, quebrando o silĂȘncio que acoberta abusadores.
A cada 11 minutos, uma mulher Ă© estuprada no Brasil. Os Estados Unidos, a grande potĂȘncia mundial, registrou recentemente quase 90 mil estupros em um ano, o equivalente a dez casos por dia. Embora jĂĄ existam serviços de acolhimento mais humanizados ao redor do mundo – em Juiz de Fora esse trabalho Ă© feito pelo Parbos -, Ă© comum, ainda, ver a dĂșvida recair sobre a vĂtima. Paira sobre ela, na maioria dos casos, a infame incerteza: serĂĄ que ela procurou isso? Como estava vestida? TambĂ©m foi sair sozinha!
Ainda sob o impacto da saga da britĂąnica, eu caĂ na besteira de ler o primeiro dos 375 comentĂĄrios postados sobre a histĂłria dela. “Safadinha… VocĂȘ deve ter gostado”, escreveu um leitor para Lillian. O comentĂĄrio infame, cheio de Ăłdio, machismo, preconceito e indiferença, me indignou. Ancelmo Gois, o mediador de uma mesa de debates formada predominantemente por mulheres, sabia bem do que estava falando. E eu, faço coro com ele: AtĂ© quando esses covardes serĂŁo acobertados pelo anonimato na internet?