Dez anos em um giro
Uma câmera gira em 360º e nos conduz a uma passagem de tempo de dez anos, que ajuda a compreender a história dos personagens de uma comunidade da periferia carioca. Mundialmente famosa, a cena de "Cidade de Deus" (2002), marco do cinema nacional, dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, mostra Buscapé, interpretado por Alexandre Rodrigues, sendo transportado para o passado dos acontecimentos que culminaram na guerra entre Zé Pequeno e Mané Galinha, traficantes da Cidade de Deus – CDD para os íntimos.
Dez anos depois, Alexandre protagoniza take similar, no documentário "Cidade de Deus – 10 anos depois", de Cavi Borges e Luciano Vidigal, que teve pré-estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes no último sábado em um possível recorde de público da Mostra Praça. Na cena, que se mistura com imagens do filme de Meirelles, somos transportados para dez anos após o filme e convidados a conhecer as transformações e os conflitos nas vidas dos atores e atrizes em função de sua participação no longa. O filme recebeu quatro indicações ao Oscar (fotografia, roteiro adaptado, montagem e direção para Meirelles) e percorreu tapetes vermelhos do mundo inteiro.
Das favelas, onde foram recrutados, para Hollywood, parte do elenco conseguiu desfrutar das portas abertas por "Cidade de Deus" e emplacar carreiras artísticas, outros, no entanto, não tiveram o mesmo destino, trajetórias que o longa aborda falando sobre barreiras como preconceito social e racial, criminalidade e falta de estrutura familiar. "Observamos que quem teve uma estrutura familiar e buscou estudo formal e do teatro conseguiu aproveitar estas oportunidades. Uma coisa é interpretar um personagem que tem muito a ver com sua realidade socioeconômica e cultural, mas ator faz de tudo: mocinho, bandido, palhaço, e muitos não estavam preparados para uma carreira artística ou mesmo para a fama", diz Cavi.
De Cannes ao pão com ovo
Segundo Cavi Borges, o filme surgiu por sugestão da jornalista Maria do Rosário Caetano, biógrafa de Fernando Meirelles, que escrevia uma matéria sobre os dez anos do filme. "Ela me procurou por causa da minha relação próxima com o ‘Nós do morro’, projeto cultural do Morro do Vidigal, de onde a maioria dos atores saiu. Então ela disse: ‘Cavi, por que você não faz o filme? Você conhece todo mundo, faz tanto filme… E eu adorei a ideia. Chegando ao Rio, procurei o Lu (Vidigal), e ele topou na hora." Juntos, os diretores procuraram o Meirelles, que gostou da ideia, mas recusou o convite para ser produtor do longa, mas se propôs a ajudar os cineastas como pudesse. E cumpriu a promessa. Foi por causa de uma ligação dele para o Canal Brasil que Cavi e Luciano iniciaram as filmagens, com uma verba de R$ 50 mil oferecida pela emissora primeira parceira do filme – o resto foi obtido por um inusitado ‘crowdfunding’, iniciado no Facebook de Cavi.
No documentário, o foco dos diretores foi nas histórias de vida que tiveram mais transformação após o longa de 2002. "Abrimos mão de atores famosos que poderiam ajudar a chamar atenção para o filme em prol de contar histórias de transformação. Entrevistamos, por exemplo, o (ator) Matheus Nachtergaele, mas ele acabou não entrando nesta última montagem, porque a vida dele não mudou tanto com o filme. Claro que ele teve novas experiências com este trabalho, mas já era um ator renomado antes disso", pondera Cavi Borges.
Em um momento do novo filme, Alexandre Rodrigues, que encarnou Buscapé e ainda atua, comenta o paradoxo de sua ida a Cannes, quando voou pela primeira vez, e a volta para sua casa, cheia de goteiras. Da mesma forma, Renato Souza, intérprete de Marreco, um dos bandidos do Trio Ternura, que aterrorizava a CDD nos anos 60, aparece no longa de Cavi e Luciano sem um dos dentes da frente, na oficina mecânica em que trabalha atualmente, assumindo seu deslumbre com o sucesso repentino. "Eu gosto muito do pão com ovo. Mas, naquele momento, eu estava sentindo o gostinho do caviar", confessa ele sobre seu momento de celebridade.
Por outro lado, há também os testemunhos de Alice Braga e Seu Jorge, que estrearam em longas com "Cidade de Deus" e construíram sólidas carreiras dentro e fora do Brasil depois do filme, ela tendo estrelado grandes produções de Hollywood e ele atuado em alguns filmes dentro e fora do país, além de sua carreira musical. Outro que caiu nas graças da mídia foi Thiago Martins, que teve um papel pequeno e, depois de "Cidade de Deus", atuou em vários longas, é contratado da Globo e também roda o Brasil como cantor.
Segundo Cavi, a própria negociação com os atores daria um filme, já que alguns, que viram o filme como oportunidade, chegaram a pedir cachê por sua participação. "Em documentários, normalmente os personagens têm pouco conhecimento de circulação do produto audiovisual, mas ali estávamos lidando com atores, que sabiam que aquilo poderia ter um grande alcance. Isso até influenciou no filme: parte do que se vê é ficção, uma vez que eles escolheram o que quiseram falar sobre suas vidas. Mas incorporamos isso, porque faz parte do processo." O processo, aliás, foi o próprio filme, segundo Luciano Vidigal. "Fizemos um argumento para saber por qual caminho seguiríamos, mas reescrevemos o roteiro várias vezes e chegamos a refilmar mesmo após termos as primeiras montagens", conta ele, destacando que parte do material que não entrou no filme deve se transformar em uma série, que ainda está em negociação. "Percebemos que o filme tem um apelo popular muito grande, então vamos batalhar para que ele chegue aos cinemas", acrescenta Cavi, destacando que não há previsão ou garantia de que isto aconteça.
‘Nunca se viram tantas caras pretas no cinema’
Para a Produtora Carla Osório, que ajudou a elaborar o argumento do documentário, "Cidade de Deus – 10 anos depois" é um filme necessário. "Estamos muito felizes com o resultado. Conseguimos abordar ‘Cidade de Deus’, uma ficção mundialmente famosa e um marco, de diversas maneiras. Nunca se viram tantas caras pretas no cinema até então! E, a partir disso, pudemos processar subtextos relacionados ao filme, como a questão do trabalho dos atores no Brasil, questões raciais, a identidade das favelas, que o filme original não abordava, mas são inerentes a ele."
Em seus depoimentos, Roberta Rodrigues (Berenice no filme de Meirelles), que emplacou diversas personagens na Rede Globo e integra o grupo Melanina Carioca ao lado do companheiro de set em "Cidade de Deus" Jonathan Haagensen (Cabeleira), fala sobre o preconceito racial que ainda existe no meio artístico.
"Para você fazer um trabalho no Brasil, tem que ser escrito assim: ‘advogado negro’ ou ‘advogada negra’. Não é advogado. Advogados são todos os outros. Eu sou advogada negra. Ou a médica negra. Tem esse limite, né?", questiona a atriz no documentário, em tema também debatido por Jonathan em sua fala, ao dizer que "Cidade de Deus", de certa forma, estigmatizou seu trabalho. "Como eu faço para sair desse filme, como eu faço para ser o Jonathan ator?", foi o que se perguntou várias vezes.
Para o diretor Luciano Vidigal, morador até hoje da favela que lhe empresta o sobrenome e assistente de casting no filme original, o distanciamento entre seu trabalho como diretor de "Cidade de Deus – 10 anos depois" e sua relação pessoal com os atores foi muito difícil.
"Sou ator, sou negro e sou do Vidigal, então muitos dos que participaram de ‘Cidade de Deus’ são meus amigos, foram meus alunos. E parte dos questionamentos que eles fazem em relação à arte no Brasil é também a minha realidade", explica ele, destacando que um dos momento mais árduos da produção do documentário foi reencontrar Renato Souza (Marreco), convencido por ele a integrar o elenco de Meirelles. "Me sinto culpado, porque eu o lancei e lhe apresentei este mundo do cinema, e hoje ele está naquela circunstância. Foi difícil separar as coisas, apesar de ele próprio ter um discurso maduro em relação a seu deslumbramento. Mas vejo que, de forma geral, o Brasil não está preparado para receber novos talentos, sobretudo no meio audiovisual, e o filme mostra isso."
Assim como a cena que gira em 360º, o documentário possui diversos diálogos estéticos, de linguagem e mesmo de conteúdo, com "Cidade de Deus". "Percebemos que a vida dos atores era muito próxima à dos personagens que interpretaram, então ressignificamos o filme do Fernando e da Kátia, usando as imagens dele, dialogando com que os atores falam no nosso documentário", aponta o diretor. O recurso é usado na fala de Bernardo Silva, que relata ter participado de furtos com os amigos enquanto imagens da gangue da Caixa Baixa, grupo de crianças assaltantes do filme, aparecem na tela em pequenos furtos. O mesmo acontece quando Leandro Firmino, intérprete do inesquecível bandido Zé Pequeno e ator até os dias de hoje, é mostrado no documentário cumprimentando os amigos na Cidade de Deus, onde ainda vive. A cena é intercalada por imagens da ficção, de Zé Pequeno subindo o morro e cumprimentando a comunidade.
Para Luciano, esta proximidade é possível, quando, em filmes como "Cidade de Deus", "Cidade dos homens" e "5x favela", os atores podem ser co-roteiristas da obra. "Como ator, já fui questionado por traficantes: ‘Ó, faz esse sequestro direito hein?’ Nós somos cobrados para representar estas pessoas", observa ele.
O documentário mostra, inclusive, algumas situações em que vida e arte – lamentavelmente – se espelham. É o caso de Rubens Sabino, o Neguinho, parceiro de maldades de Zé Pequeno no filme, que foi preso depois da estreia de "Cidade de Deus" e reaparece no documentário, em frente da delegacia onde ficou encarcerado. Já Jefechander Suplino, o Alicate, que abandona o crime para abraçar a religião na ficção, está desaparecido, e há suspeitas de que esteja morto. "Infelizmente, vemos vários Pixotes surgindo o tempo todo", opina Cavi, em menção ao ator Fernando Ramos da Silva, protagonista de "Pixote – A lei do mais fraco", de Hector Babenco, assassinado por policiais ao se envolver com criminalidade em 1987.
Cavi destaca que, além de debater questões inerentes às realidades que "Cidade de Deus" abarca, "Cidade de Deus- 10 anos depois" debate importantes valores da sociedade, como fama e sucesso. "As pessoas querem saber quem se deu bem, quem se deu mal. E, para mim, o filme ajuda a relativizar estes conceitos. Fez sucesso quem está na Globo? Quem está fazendo cinema? Para mim, o Bernardo Silva, que venceu o vício das drogas e hoje sustenta a família trabalhando em um restaurante popular, é um vencedor."