‘É impossível ser feliz sozinho’?
A cena é clássica no reino animal: após ser delicadamente alimentado pela mãe, nascerem algumas de suas penas e surgir sua força, o filhote de pássaro está pronto para voar. Algumas mães, contudo, presenciam os primeiros fracassos. Outras deixam a natureza agir. Na cultura brasileira, de Leste a Oeste e de Norte a Sul, o discurso da crise serve como projeto para diferentes artistas. Há os que voam e os que tombam. Em comum, a crescente ausência do Poder Público no processo cultural, seja ela já aplicada à prática, seja ela no campo do discurso. “Independência!”, defendem gestores de diferentes esferas. Na cidade, porém, independência implica salto ou queda?
“É sempre possível produzir sem depender da verba pública. Juiz de Fora é um exemplo de que isso pode acontecer”, comenta o escritor Ulisses Belleigoli, autor de dez títulos – metade deles financiada pela Lei Murilo Mendes, mecanismo de incentivo municipal, e a outra metade publicada por pequenas editoras locais. “Talvez não tivesse editado esses livros sem o amparo da Lei. Um livro é muito caro e exige muitas etapas. Tem um poeta, o Juan Ramón Jiménez, que fala que a literatura é a arte da imensa minoria”, pontua ele, certo de um papel do Estado que transcende o simples repasse financeiro. “Muitas vezes as leis de incentivo publicam o que está fora da lógica de mercado. Elas têm o papel de não apenas gerar produtos artísticos, mas de produzir pensamentos.”
Números apontam para um cenário de poucas perspectivas, e agendas denunciam a falta de efervescência. Nada novo, garantem os artistas. “A realidade que existe hoje, da dificuldade de conseguir verba pública para produzir arte, é uma constante na vida do artista, principalmente daquele que vive no interior. Há a possibilidade de produzir em Juiz de Fora, mas é preciso encontrar quem dialogue contigo, porque, se o dinheiro não vem, o que segura é o afeto”, assevera o ator e produtor Vinícius Cristóvão. “Sempre convivi com pouco recurso e consegui agir”, acrescenta o artista visual Petrillo, para logo reforçar: “O Poder Púbico se aproveita do discurso da crise para se omitir diante da cultura. A crise não é apenas financeira.”
Cultura pode ser um bom negócio
A fim de evitar desvios e desarticulações, é preciso que a classe se configure como comunidade. “A questão é defender a cultura como algo que não é mero acessório”, propõe Cristóvão. Cineasta e pesquisador, autor do curta-metragem “Barbante”, financiado pela Lei Murilo Mendes, Daniel Couto aponta para a necessidade de novas práticas comportamentais e de consciência. “O empresariado na cidade auxilia a cultura como pode, mas, na maioria das vezes, o faz em forma de apoio (ajudando com alimentação, cedendo locações, fazendo empréstimos). Creio que ainda falta enxergar a cultura como um negócio que irá gerar retorno”, analisa Daniel. Seu filme foi adquirido e exibido pelo Canal Brasil, conferindo outra visibilidade – nacional – a apoiadores locais. “É um bom retorno, não concorda?”
A estiagem, para Cristóvão, também proporciona a colheita. “No Corpo Coletivo (companhia da qual faz parte), estamos construindo uma rede de apoiadores culturais. Ainda não entra capital, mas conseguimos hospedagem, alimentação, transporte. É uma troca. Além disso, todas as pessoas que estão com a gente trabalham de forma colaborativa, porque compreendem que não temos a condição de pagar cachê prévio, o que vem com a bilheteria de um espetáculo”, afirma ele, que iniciou a carreira em Juiz de Fora, viveu seis anos no Rio de Janeiro e há três retornou, dividindo-se, desde 2016, entre o táxi em São João del Rey – que lhe dá o sustento do bolso – e o espaço OAndarDeBaixo (sede da companhia) – que lhe dá a força artística.
‘Fundamental é mesmo o amor’
Ainda que existam dependências financeiras, fazer arte é trabalho individual e, acima de tudo, exercício íntimo. Tornar público, contudo, é gesto que implica alguma coletividade. E mesmo que o Estado se abstenha, como tem feito, na prerrogativa de ajustes fiscais, as engrenagens da arte não param. “O momento exige que a gente se reinvente, minimizando os custos sem perda da qualidade. É preciso ser otimista e ter objetivo, mas tudo com cautela, para não trocar os pés pelas mãos”, comenta o artista visual Petrillo, que segue pintando e fotografando, comercializando sua arte no Rio de Janeiro e em Juiz de Fora, onde leciona numa faculdade particular e em sua própria galeria. Carga horária superlativa para se permitir artista.
Se há alguns anos sua galeria, a Hiato, realizava vernissages a cada dois meses, em 2017, ano em que completa 15 anos, apenas uma exposição está acertada. Trazida da capital fluminense, onde foi exibida na Galeria Oriente, “Gabinete de curiosidades” passa dos 120 artistas originais a 200 no espaço juiz-forano, que conta com curadoria do carioca Marco Antônio Portela e co-curadoria de Petrillo. “É preciso agir. Essa é a resposta”, defende. Por conta própria, também, Ulisses Belleigoli e seu “Homo Sapiens Erectus” esperam chegar a São Paulo e Belo Horizonte, depois de o livro ter sido lançado em Juiz de Fora e Rio de Janeiro.
Apontada como um dos principais impasses envolvendo a arte produzida em Juiz de Fora, a distribuição representa, para o cineasta e pesquisador Daniel Couto, uma das vias capazes de possibilitar a independência dos artistas locais. “Sem a ajuda do Estado ou da iniciativa privada de grande porte, mesmo que uma obra (cinematográfica) financiada coletivamente saia do papel continuará esbarrando nessa questão”, pontua ele, referindo-se, portanto, à limitação de ferramentas como o crowdfunding, que não costuma conjugar altas cifras, principalmente em relação aos projetos desenvolvidos no interior do país. “É um mecanismo possível, mas para mim nunca deu certo. É necessário um marketing muito maior do que o próprio projeto”, completa Cristóvão, sugerindo que cada produtor encontre, à sua forma, a melhor maneira de produzir. “A crise é inerente ao homem”, comenta.