Reforma política
Uma nova reforma política deverá sair do forno até outubro do próximo ano. Antes da discussão inevitável sobre a engenharia institucional – voto distrital, voto distrital misto, cláusula de barreira, financiamento dos partidos, etc. -, vale a pena uma conversa prévia, uma terapia preventiva para que a reforma não incida apenas sobre aspectos funcionais do sistema de poder.
Estamos vivendo de forma intensa e inédita em nossa história o desafio enfrentado pelas revoluções norte-americana e francesa para a invenção da democracia moderna: a necessidade de associar as ideias – e práticas – de soberania popular, sistema representativo, república e liberdade individual. Nenhuma delas resolveu definitivamente este desafio. A tentativa de harmonização conceitual e institucional destas ideias faz da democracia um experimento permanente e infindável, e, depois de mais de 20 anos de vigência da Constituição de 1988, estamos obrigados a reconhecer a forma esquizofrênica como materializamos estas ideias básicas da democracia.
A chave usual para deslindar os modos de associação destas ideias está na definição da soberania popular. Recolhendo a experiência do constitucionalismo ocidental do pós-guerra, a Constituição brasileira conferiu um significado plural e complexo à ideia de soberania popular, multiplicando os lugares para a sua realização. A soberania do povo presente se exerce pelo voto, que autoriza o mandato dos vereadores ao presidente, e através de referendos ou iniciativas legislativas diretas. A soberania do “povo eterno”, base da república entendida como uma comunidade de gerações passadas e futuras, materializa-se no Supremo Tribunal – o intérprete final da Constituição -, no Judiciário e no Ministério Público. As funções de vigilância do sistema representativo como um todo estariam garantidas pela liberdade de imprensa, em princípio, o instrumento de uma opinião pública bem informada.
A Constituição reconhece e legitima ainda uma miríade de figuras destinadas a oferecer ao “povo soberano” outras e variadas formas de manifestação e de realização de cada cidadão. Em suma, a Constituição sabe que a ideia de um povo indivisível, único e dotado de uma identidade prévia e totalizante é um mito, e não mais do que isto. Quem não sabe são os representantes desta soberania originária, plural e enigmática. Cada um se julga o detentor de um poder ilimitado, num jogo de confrontação e cooptação, que faz da ideia de representação um puro instrumento de poder e de união mística com um povo mitificado, a nação ou a opinião pública.
Ironicamente, longe de oferecer densidade à dimensão fundamental da política, os nossos semideuses – Lula, ministros do Supremo, juízes e promotores, jornalistas – a corroem e aviltam. Um divã constitucional talvez possa restituir a todos a dimensão real de que são apenas agentes autorizados pelo povo, com a esperança de que exerçam o poder em seu nome.
Só isso, para começar.