Judicialização da política
“(…) esse comportamento parece aguçar a ânsia de poder de juízes e tribunais, que se sentem estimulados, cada vez mais, a imiscuir-se em questões privativas de outro Poder, que, a rigor, deveriam abster-se de examinar.”
A judicialização da política verifica-se na medida em que o Poder Judiciário é chamado a atuar na solução de conflitos em torno de questões que, pela sua natureza, deveriam ser resolvidas no âmbito do Legislativo ou do Executivo. Essa atuação resulta, em geral, da iniciativa de parlamentares ou de partidos políticos, que, inconformados com deliberações adotadas pelo órgão legislativo competente sobre determinadas matérias, procuram, assim, obter da Justiça um pronunciamento em sentido contrário, invocando, para tanto, possíveis inconstitucionalidades ou ilegalidades que tornem nulo o processo deliberativo. Trata-se, pois, de um fenômeno de transferência de poder decisório, que faz do Judiciário, o mais das vezes, uma instância destinada ao prolongamento do debate legislativo. Em muitos casos, os protagonistas desse procedimento não se dão conta de que o vezo de bater às portas da Justiça com esse intento representa, no fundo, uma abdicação das próprias prerrogativas ou um desprestígio para a Casa legislativa que integram ou para cuja formação concorreram. É que, não raro, as questões que motivam tais iniciativas envolvem o regimento da própria Casa, constituindo o que, na linguagem jurídica, se qualifica de interna corporis, ou seja, aquilo que diz respeito, estritamente, à apreciação dos parlamentares, estando, por isso mesmo, imune ao reexame pelo Judiciário. Por outro lado, esse comportamento parece aguçar a ânsia de poder de juízes e tribunais, que se sentem estimulados, cada vez mais, a imiscuir-se em questões privativas de outro Poder, que, a rigor, deveriam abster-se de examinar. E, dessa forma, vai-se ampliando ou se tornando normal, por força de uma prática em tese anômala, o que se tem chamado de judicialização da política.
Oura faceta do fenômeno que estamos a analisar é a da frequente implementação de políticas públicas pelo Judiciário, ensejada pela Constituição em vigor, que estabelece obrigações muito amplas e vagas ao Poder Executivo, sobretudo nos campos da educação e da saúde pública, cuja realização, na prática, acaba sendo objeto de decisões judiciais, ainda que à margem dos orçamentos fiscais. E, aí, o juiz (ou o tribunal) passa a atuar como se fosse administrador, invadindo, mesmo, uma área que, igualmente, se tinha, antes, como indevassável, que é a do mérito dos atos administrativos, isto é, os aspectos de oportunidade e conveniência da prática dos atos de competência da administração pública.
Numa hipótese como noutra, essa aparente hipertrofia do Poder Judiciário encontra fundamento na Constituição em vigor, caracterizada por ser uma Carta Política principiológica, cheia de princípios atraentes para os doutrinadores e tormentosos para os seus aplicadores, como os princípios da moralidade e da eficiência administrativa. Além disso, uma nova concepção do direito constitucional, traduzida no chamado neoconstitucionalismo, tem dado margem a interpretações extremamente elásticas dos preceitos constitucionais e respaldado uma forma de atuação do Judiciário, que parece fazer tábua rasa da separação de poderes: o ativismo judicial. Arma-se, em consequência, o cenário ideal para algo mais grave, que é a politização da Justiça. Nesse cenário, têm atuado, aliás, com desenvoltura, alguns eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal.
O Judiciário é o árbitro dos demais Poderes. Compete-lhe dar a última palavra na aplicação da Constituição e das leis. Não lhe cabe, contudo, mesmo sob o pálio da Constituição atual, exercer poder normativo ou definir o que corresponda, ou não, ao interesse público. Há que respeitar a separação de poderes, viga mestra do nosso sistema constitucional.